sábado, 23 de julho de 2011

O pôr-do-sol

Era um canteiro de sol empoeirado onde ela vivia e que, por algum motivo, não saía dos seus olhos cinzentos. A casa era quase uma montagem dos erros e acertos de qualquer ser humano, o que talvez explicasse o eterno fascínio e contemplação do pôr-do-sol – sempre assistido, por eles, à janela da sala. Passavam momentos saborosamente preguiçosos diante do café com leite-em-pó que ela servia junto às torradas amanteigadas todo o final de tarde. Os móveis rústicos junto aos livros amontoados davam uma cor nobre ao jogo de luz e sombras que brotavam tão casalmente das cortinas que valsavam com o vento da tarde. Ela adorava o seu toca-discos antigo e aquela Billie Holiday escorrendo pelo chão de madeira laminada, o cheiro do café e os olhos acinzentados do homem que, sentado, olhava fixamente o pôr-do-sol como que visualizando uma parte que escapou da lembrança. “Por que não compra um cd player?”, ele perguntou certa vez; ela, ao que parece, sorriu sem responder. Queria dizer que era pura influência do marido, músico, que adorava o som grave do vinil e que nenhuma outra tecnologia conseguira reproduzir de forma fidedigna, mas mencionar o finado marido poderia preencher a cena com aquele ar sisudo e broxante do respeito culposo. Não! Ela ainda tinha maravilhosos e fartos seios para atirar nas ventas daquele homem de olhos cinzentos. E ele, olhava o sol porque também tentava tirar dele a força-vital, a energia e coragem para dizer que já se passara muito tempo da morte do músico, e ele queria manchar o lençol dela com ela e dentro dela. E entre o desejo, a coragem e os espaços vazios e empoeirados, passaram anos e anos contemplando juntos o pôr-do-sol, o café, as torradas e a Billie Holiday que, não raro, dava lugar à Bessie Smith no toca-discos antigo. Uma vez apenas, ela se virou para ele e perguntou se apesar da idade, ela ainda era uma mulher bonita. Ele sentiu o coração disparar e disse algo extremamente poético sobre os seus seios, suas ancas e sobre como ele gostaria de morrer afogado nos seus braços. Ela chorou. Ele deu o seu lenço. O silêncio que imperou não era o mesmo silêncio preguiçoso de outrora, antes os sacudiu. Eles levantaram-se como que por um chamado de dentro e, mãos dadas, foram para cama. E entre a valsa, o samba e o flamenco, a noite ditou o cansaço de ambos. E nunca mais acordaram.

3 comentários:

Vais disse...

MARAVILHOSO!
grande beijo

o refúgio disse...

Lindo, lindo! Essa vai pro meu Twitter!
Beijos

Vais disse...

Ei, Marcelo,
sabe, eu ia levar este texto seu de qualquer jeito, independente das trazidas e do tempo
abração e tudo de bom