Editor do blogue Sinistras Biobliotecas
No mês de setembro, um parecer do CNE (Conselho Nacional de Educação) - disponível aqui - provocou polêmica, gerando matérias em alguns veículos da imprensa. Mas vamos ao começo da história.
O parecer (aprovado por unanimidade pelo Conselho e aguardando homologação) é resultante de consulta encaminhada por um técnico da Secretaria de Educação do Distrito Federal a diversos órgãos administrativos. Antônio Gomes Costa Neto solicitava que a Secretaria na qual trabalha e as unidades subordinadas a esta não deveriam "utilizar livros, material didático ou qualquer forma de expressão que, em tese, contenha expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual". Citava especificamente o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, que, segundo o técnico, manifestava conteúdo racista.
De acordo com a relatora do parecer sobre o caso, Nilma Lino Gomes, professora da Faculdade de Educação da UFMG, "[...] a denúncia do Sr. Antônio Gomes Costa Neto deve ser considerada coerente". Para a conselheira do CNE,
"Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a representação do negro na literatura infantil [...], os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar, por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações, representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro".
Nilma Lino Gomes observa que "a ficção não se constrói em um espaço social vazio". E recomenda algumas ações a serem empregadas para evitar atitudes reprodutoras do racismo no ambiente escolar, entre elas, fazer com que a Coordenação-Geral de Material Didático do MEC (uma vez que Caçadas de Pedrinho integra o acervo do PNBE*) exija "da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura".
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Há quem tenha interpretado o parecer (não é meu caso) como uma tentativa de proibir a circulação do livro de Monteiro Lobato. Além disso, o caso faz emergir outros pontos de discussão que despertam polêmica, entre eles: a desconfiança que se tem sobre o preparo dos professores para lidar com situações complexas e que vão além da prática pedagógica rotineira; o papel das bibliotecas escolares - setor particularmente afetado por decisões internas e externas referentes a permissão ou restrição de acesso a determinados livros; ou mesmo o patrulhamento motivado pela ideologia do politicamente correto.
Uma questão, entretanto, pareceu-me "passar batida", apesar de toda a celeuma em torno do assunto: a maneira como enxergamos os escritores, sobretudo aqueles consagrados e/ou considerados canônicos, como Lobato. Com frequência, achamos que os escritores, por serem artistas conceituados - indivíduos geniais, em alguns casos - deveriam merecer análises de sua obra baseadas apenas em critérios estéticos. Possuiriam eles uma espécie de "imunidade artística". Tal posicionamento indica, a meu ver, uma idealização da relação escritor-obra.
Devemos lembrar, penso eu, que a capacidade criadora de um escritor não está isenta da influência de fatores sociais e históricos que condicionam a existência de qualquer indivíduo. E é possível criticar seu trabalho incorporando ao exercício analítico a observação desses fatores, indo além da Teoria da Literatura e da Estética. Escritores são meros mortais (apesar da ABL afirmar o contrário sobre um seleto grupo, do qual, aliás, Monteiro Lobato foi excluído).
Marisa Lajolo, em um ensaio excepcional sobre o escritor paulista** -disponível aqui - (e que foi citado pela conselheira Nilma Lino Gomes no parecer em discussão) realiza um desses estudos mais abrangentes a que me referi; falo a seu respeito na próxima postagem.
* PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) - Ação do MEC, através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, responsável pela distribuição periódica de livros e outras publicações destinadas a alunos e professores das escolas públicas, executada desde 1997, incrementado bibliotecas escolares e salas de leitura.
** LAJOLO, Marisa. A figura do negro
4 comentários:
Ué, Marcelo, muito obrigado pela divulgação.
Marcelo, me permito reproduzir o comentário que fiz lá no Halem:
Questão delicada? Nada disto. Um baita pepino, um tremendo abacaxi ou uma bananosa monumental. Eu é que não me proponho a descascar. Gosto de Lobato. As reinações de Narizinho foi o segundo livro que li (o primeiro foi as Aventuras de Tibicuera, do Érico). Porém, o tributo pago às descobertas que me proporcionou na infância (querida que os anos não trazem mais) não impede que o adulto reveja sua obra com olhos criticos. A saída - difícil - é achar o meio termo mencionado pela doce e perspicaz Adelaide.
No mais, concordo contigo, nada de sacralizar os escritores. Vamos sacudir a roseira, rodar a baiana. Como disse Millôr: a discussão pode não trazer a luz, mas acaba com muita ideia idiota. (Não que considere que este seja o caso de Lobato, me apresso em esclarecer). A própósito, um livro dele que merece ser resgatado é O presidente negro, uma ficção futurista surpreendente.
Abraço.
Jens, o que é muito pior: na Baixada Fluminense, minha terra, uma parcela alta das crianças não sabem quem foi Monteiro Lobato.
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Abraço forte!
Com certeza Marcelão...Infelizmente sim! Mas realmente racismo e preconceito devem ser combatidos sim. O MOnteiro vivia em outra época, e muitos filósofos eram racistas, até Aristóteles era a favor da escravidão. Não é por causa disso que teremos de compactuar com tais idéias ultrapassadas, quem interpreta o livro é o leitor ou vice versa?
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