sábado, 23 de outubro de 2010

A sucessão e a política externa


Uma campanha política deve servir para a educação da cidadania. Ao discutir os grandes temas nacionais, que sempre se resumem ao conflito permanente entre os ricos e os pobres, os candidatos possibilitam aos eleitores que os conheçam e saibam de suas ideias e doutrinas e de seus projetos de governo.

Foi dessa forma que, na campanha para o Senado em Illinois, em 1858, dois grandes homens, o juiz Stephen Douglas e Abraham Lincoln, iniciaram o ritual dos debates públicos. Douglas era partidário franco da escravidão, e considerava os negros e os índios raças inferiores. O eleitorado de Illinois – de acordo com circunstâncias conjunturais que fogem destas notas – somava-se a Douglas. Assim, a Assembleia do Estado (que elegia os senadores) ratificou os aplausos populares ao juiz, e o escolheu. A edição dos debates em livro, e sua difusão no resto do país, fez de Lincoln uma figura nacional, e impeliu a sua candidatura vitoriosa, dois anos depois, à Presidência dos Estados Unidos.

Os historiadores norte-americanos reconhecem esses desafios oratórios como enorme contribuição para a construção democrática da República. Neles, Lincoln defendia a Declaração da Independência, com a doutrina da igualdade entre todos os homens, contra a ilimitada soberania popular, de Douglas, que podia, se quisesse, estender a escravidão a todo o país. Eleito presidente, Lincoln teve que enfrentar a Guerra da Secessão e recebeu o apoio de Douglas, que tentou negociar com o sul e impedir o conflito armado. A brutalidade da guerra civil e o assassinato de Lincoln não diminuem a imensa presença histórica do advogado de Springfield; ao contrário, confirmam-na.

Estariam dispostos os tucanos a retornar à posição de seu governo anterior, ou seguiriam a conduta atual do Itamaraty? Este é um assunto que, discutido seriamente, e não pela rama, como vem ocorrendo, ajudaria os cidadãos brasileiros a entenderem um pouco do que se passa no mundo e a decidirem com mais segurança. A política externa não é restrita aos diplomatas, que a exercem em nome do Estado. É a expressão da consciência e do exercício cotidiano da soberania nacional. Temos o direito de saber o que pensam os que nos querem governar, sobre como devemos atuar no mundo. Os nossos melhores momentos em política externa foram aqueles nos quais, sem inútil e chocha jactância, mas com firmeza, como agora, defendemos os nossos direitos, sem desprezar os dos outros.

Devemos continuar afastados das aventuras do combalido império norte-americano, que se prepara para mais uma retirada constrangida de outra de suas guerras malogradas. Os ianques já admitem conversar com os talibãs um convênio de paz, depois da morte de milhares e milhares de pessoas no Afeganistão, entre elas jovens combatentes norte-americanos. Tal como ocorreu no Vietnã e alhures, não terão atos heroicos de que se lembrar, mas a memória perturbadora de crimes de guerra, de suicídios de seus soldados, do apodrecimento moral das tropas.

Os diplomatas de nossos dias provavelmente não se preocupem tanto, quanto os do passado, com os termos do Tratado de Westfália, nem com os bastidores do Congresso de Viena, que arbitrou os interesses do mundo pós-napoleônico, mas estão atentos à emergência de novas potências, entre elas o nosso país.

Isso recomenda que mantenhamos a política de solidariedade para com os povos mais injustiçados pela História, como os da África. Uns conquistam com as armas, o que é sempre efêmero e odioso; outros, com a solidariedade efetiva. É o que estamos fazendo.

5 comentários:

Renato Couto disse...

Eu leio,leio,leio...Mas me pergunto: Será que um dia consigo toda a erudição do Santayana?

Marcelo F. Carvalho disse...

Renato, eu também sou um grande admirador do Santayana. Mais um motivo para lamentar a extinção do JB de papel.

BirdBardo Blogger disse...

Prof. saudades de comentar por aqui! Enfim, a revista Carta Capital apresentou uma matéria a respeito disso. Os tucanos em matéria de Diplomacia querem que voltemos a ser quintal. Não dá pra acreditar no que o Serra diz, só de promessas ele levou 1,3 % do PIB imagine o resto...E ele se diz economista!

Marcelo F. Carvalho disse...

Pardal, é por aí mesmo. O Renato consegue explicar (infinitamente) melhor a questão econômica, mas não há dúvidas de que todas as promessas são o Eterno Retorno se repetindo como farsa.
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Pena para nós, os eleitores.

Jens disse...

Porra, dá prazer ler um texto assim.
Valeu, Marcelo.