quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A ofensa do ofendido


 
Alguém se lembra dos ecochatos? Aqueles bicho-grilos falantes e indiferentes à urgência do progresso que se amarravam em jequitibás para trancar a passagem da civilização sobre a natureza? Pois é. Durante anos, bastava alguém levantar qualquer objeção à impunidade de tratores e serra-elétricas para ser desautorizado: você é “só” um ecochato. Logo, não merecia ser ouvido. E por não ter sido ouvido, durante anos, os modelos de exploração, consumo e descarte seguiram inalterados, às custas da destruição de matas ciliares, poluição de rios e extermínio das espécies.

Com o tempo, a ciência conseguiu ligar os pontos entre a devastação humana e os desastres supostamente naturais. Aprendemos, aos trancos, que o barranco desmatado de ontem é a área de deslizamento de hoje. Que o buraco devastado na floresta distante é o alçapão dos chamados rios voadores, estes que hoje minguam em nosso jardim, nossas áreas produtivas e nosso sistema de abastecimento. Que a emissão desregrada de CO2 é o tampão da panela de pressão a derreter calotas, elevar o nível dos rios, colocar em risco as populações litorâneas com ondas do tamanho de edifícios.
Pois é. A evolução cientifica serviu também para devastar o deboche. Os ecochatos de ontem são hoje chefes de Estado sentados à mesa em busca de uma solução para evitar o colapso.

Enquanto nem tudo se perde, a lição serve como uma esperança. Pois se tem algo positivo de ser adolescente em 2014 e não em 1984 é que, graças à nossa conexão em rede, os canais de informação se multiplicaram. Já não dependemos das vozes oficiais para ouvir, para aprender nem para nos divertir. Nesse novo mundo, os filhos já não se contentam com o “porque sim”, “porque é certo”, “porque sempre foi assim” do padre, da nona ou da TV aberta. Basta uma combinação bem-feita no Google para rebater, com fotos e dados, muitos dos lugares-comuns repetidos há séculos pelos velhos papagaios: não existe latifúndio no Brasil, não existe devastação, o mundo não está mais quente, a cidade está mais segura, o presidente sabe o que faz, negros e gays não se ofendiam com as piadas de antigamente.

É um efeito natural: quanto mais informação, maior o espírito crítico, maior a gritaria. Maior, também, a reação à gritaria. Dessa forma, os chamados “politicamente corretos” se tornaram os novos “ecochatos”: basta levantar o dedo para dizer que piadas com minorias não têm a menor graça para ouvir todo tipo de recriminação. “É só uma brincadeira”. “Você não sabe o que é uma piada?”. “Você não tem humor”.

Exemplo disso foi dado, no início da semana, por um dos principais ícones do humor brasileiro. Em entrevista à revista Playboy, o ator e comediante Renato Aragão se queixou da maldade nos olhos de quem vê maldade nas piadas que o consagraram. "Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam. Elas sabiam que não era para atingir, para sacanear".

Não vou ser malicioso e atribuir a um suposto ato falho do Trapalhão a inclusão de negros e homossexuais na categoria “dos feios”. Vou apenas questionar: será que negros e gays não se ofendiam mesmo? Quem atestou? Quem mediu? Quem referendou? O Datafolha? O disk Criança Esperança? Ou será que, sem os mesmos canais de antes, a ofensa era apenas tolhida e pouco reverberada? Como medir o alcance de uma ofensa em um mundo sem redes de relacionamento que hoje unem ofendidos do Norte, do Sul e do Centro, antes espalhados e desconectados, em uma mesma conversa? Será que hoje, ao saber que sua ojeriza é compartilhada, o ofendido não se sinta estimulado a expressar o que sente? Ou será que a queixa é apenas sintoma de uma geração mal-acostumada que não têm boa vontade o suficiente para distinguir uma piada de um tapa?

Bom, se valer o argumento do líder dos Trapalhões, o tapa também já foi mais respeitado pelos antigos. Escravos eram açoitados em praça pública e sempre levaram na boa – o silêncio da focinheira era, assim, apenas um charme. Da mesma forma, gays eram estapeados pelos pais dentro de casa até desentortar e não se ofendiam com a ação enérgica. Pelo contrário: entravam na linha, seguiram o curso da normatividade, se casavam com pessoas do sexo oposto e aceitavam ser infelizes para sempre.

E hoje em dia? Hoje em dia, o tempo da maldade, há inclusive leis para se punir surra corretiva dentro de casa. Vai ver é por isso que, longe da correção, gays, lésbicas e travestis tenham perdido a vergonha de sair à rua em passeatas para reforçar o próprio orgulho.

Na cabeça dos antigos, ao menos os que ainda pensam como em 1984 (ou seria 1884? Ou 1784?), o que falta a esses grupos é vergonha, e a vergonha tem dois aliados inseparáveis: o tapa e a piada. Ambos coram a pele. Ambos deixam marcas. Ambos servem para colocar os diferentes “em seu devido lugar”. Antes bastava chamar de bicha, bichinha, bichola. Ou de “pretis”. Ou dizer que “pretis é seu passadis”. Ou que amanhã é dia de branco. Ou que o serviço ficou uma pretice.

“Ah, mas o Mussum não ligava”. Pobre Mussum: em teu nome quantas ofensas foram escancaradas e justificadas, estas sim sem a menor vergonha? Pois, além de chorar, que outra opção deram a ele se não ser sorrir. Sorrir como quem cala. Sorrir como quem escapa de um tapa. Sorrir como quem adia o encontro consigo mesmo. Sorrir como riem os gays quando ouvem, em casa ou no trabalho, as velhas piadas como uma ordem para seguir quietos. Sorrir como a empregada ri da piada sem graça do chefe machão para não perder o emprego. Sorrir em nome da convivência. Em nome da própria vergonha. Sorrir – se possível, gargalhar.

Hoje quem se importa com os séculos de exclusão e decide romper, com protestos, o ciclo da ofensa do tapa e do riso é chamado de “politicamente incorreto”. Ou – pasmem – de racista. É que para muitos a maturidade não serviu para entender os contextos da própria consagração. Pois é mais fácil trocar os nomes e substituir a perversidade do passado por uma ingenuidade apunhalada apenas pelos olhos de quem vê.

Na mesma entrevista, Aragão classificou as piadas que hoje ofendem como “uma brincadeira de circo entre mim e o Mussum, como se fôssemos duas crianças em casa brincando”. A intenção, disse, não era ofender ninguém. “Hoje, todas as classes sociais ganharam a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso”. É como dizer que a piada de português perdeu a graça porque o português chegou à plateia.

Enquanto o respeito citado pelo comediante for uma concessão a contragosto de quem sai de cena, ele será sempre um mal necessário, e não um processo de entendimento. Esse processo demonstra que a piada ofensiva não perdeu a graça porque o ofendido entrou em cena. Perdeu porque os níveis de consciência afloraram. Porque o mundo se transformou. Porque os símbolos ganharam novos significados. O riso é um deles.

Por incrível que pareça, o mundo não ficou mais chato por isso: muitos entenderam os novos tempos e decidiram refinar nosso humor e, com ele, nossa própria compreensão do mundo. Ninguém perdeu com isso, a não ser a velha chacota.
 
 

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