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Foto Kevin Carter |
Em algum lugar
da Baixada, mas poderia ser no centro do Rio de Janeiro, no coração do Brasil
ou na neve da Europa, uma senhora encontra-se estirada na rua, a barriga aberta
com as suas partes interiores expostas, o joelho rasgado, a testa cortada;
consciente, fala com os traunsentes que param e se preocupam e pegam as suas mãos, talvez para falar sobre o poder glorioso do criador, de gadu, jeová, ou,
simplesmente a pegam por uma questão primeira, um gesto de humanismo dentro do
microscópio. A estudante de enfermagem, atenta à movimentação, pergunta ao
conglomerado que zumbia construções soltas de palavras se alguém havia ligado
para a emergência, para a SAMU, para os bombeiros; recebe como resposta uma vã
reticência, outro alguém esboçou um “não sei” que perdeu-se em meio à matilha
que tira foto para publicação no whatsApp. O socorro não chega, mas a senhora
já é notícia para aquele grupo que tem àquela prima que mora a trocentos
quilômetros de distância e abre o aplicativo neste momento. A sociedade do
espetáculo inflama. O humano vira cinza.
Enquanto isso,
alheios à dor e indiferentes à miséria física e ao terrorismo social imposto
pelo capitalismo, alguns miseráveis de espírito, porcos de intelecto, fazem “vaquinha”
para a compra de algum bem material, talvez um apartamento, para ex-bbbs (ou o que
quer que signifique “ex-bbbs”). Saramago surge às vezes para mostrar ao astronauta
que o mundo continua boa mesa, mas não para os homens. Algo entre a alienação e
o absolutismo da individualização rimaram com foda-se e é para lá que todos os
humanistas estão indo. Sem um contraponto à insuportável realidade abissal de
objeto, negação e vácuo, a humanidade se despede da humanidade e passa a se
alimentar de fome conceitual. Estamos fodidos.
Faltam herois?
Não, falta gente.
A máquina está
vencendo.
A câmara quer um
shopping de 1 bilhão para...
Alguém liga?
Há alguém aí?
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Fala do velho do restelo ao astronauta
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
José Saramago
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)