Se você não
falar eu nunca vou saber.
Ela estava certa como sempre e, ele, confuso como nunca. E nesse ritmo
foram ficando por alguns anos, até que pintou um dinheiro a mais, uma reforma na
casa e uma inevitável proposta de junção, quase amálgama, mas era desse jeito
que as coisas davam certo e era desse jeito que os passos continuavam no
caminho. Ele dizia reticências, ela falava exclamação.
E foi num dia frio, olhando para o mar de Saquarema, que ela disse alguma
coisa totalmente inútil e, ele, numa rara certeza de estar dentro de casa por
muito tempo sem uma gota de álcool na corrente sanguínea, levantou e, sem ponto
continuativo, afirmou sem delicadeza que ela só falava merda. Ela não esperou
ele alcançar o botequim e lamber uma daquelas cachaças mineiras com cheiro de
caldo de cana e gosto de mel, foi xingando pedras e dragões pela rua até a
porta do pé-sujo com a dignidade de quem sabe fazer uma baixaria, descendo do
salto para, depois da cagada feita, subir num salto agulha.
Ele, meio que de saco cheio do frio, do ar salgado e de ficar tanto tempo
em casa, olhou-a como não se olha para ninguém e disse algo que não seria
delicado revelar. Pura falta de tempero ou diplomacia. Tivesse mantido a cabeça
no lugar veria que estava errado e que ela era a única que podia estar certa
sempre, ter as certezas que quisesse e xingar o quanto pudesse.
Mas não foi o que aconteceu e ela deu meia volta, descalça, mas sobre um
alto sapato imaginário e apoteótico. Catou umas calcinhas limpas no cesto, um
casaco, calça, bermuda e nem se lembrou da bata que adorava usar. Levou uma
semana para uma frete bater a porta exigindo umas coisas com as coisas dela. E
os invernos acabaram rápidos, mas ela demorou a aparecer na cidade. Foi
terminar o mestrado na UFF e ficou por Niterói. Amarrou-se a algum professor
que não tinha tantas dúvidas assim, mas era cheio de teorias e conflitos e
concordava sempre com ela, o que dava no mesmo.
Um dia ele experimentava um cachaça amarelada saída de um barrilzinho escondido
na prateleira empoeirada do botequim quando a avistou. Ele continuou sentado
saboreando o belíssimo líquido e a estupenda visão ao longe. Ela também o viu e
aproximou-se sem muita convicção.
– Se você não falar eu nunca vou saber – disse o homem com a barba bem
feita e ainda cheirosa.
– Você nunca foi de ter decisões.
– Nunca te vi parada sem uma verbalização da vida.
– Acho que virei você.
– Eu também.
E esqueceram de fato o que os havia separado e treparam a ponto de não
almoçarem, não jantarem. Alguém fez um sanduíche horroroso com requeijão
vagabundo e presunto queimado nas beiradas por ficar destampado na geladeira. E
voltaram como nunca foram, e amaram-se democraticamente.
Ela aprendeu a beber uma cachacinha depois do almoço, aos finais de semana,
depois de corrigir as provas da sua classe.
E ela teve muitas dúvidas entre certezas e ele idem. E assim foram até
que morreram.
O professor? Bem, continuou teorizando com outras alunas cheias de
certezas até que veio a dúvida, mas já era tarde demais.
O professor que se foda.
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