quinta-feira, 29 de maio de 2014

Ódio chapa-branca


A última coluna que escrevi falava sobre a falta de opções do eleitor carioca: todos os principais candidatos ao governo do Estado estão sendo julgados por crimes de corrupção. Muita gente me escreveu dizendo que o "Brasil não tem jeito" e que também está louco para sair daqui. Queria escrever pra essas pessoas e dizer que eu não pretendo sair daqui tão cedo.

A democracia, entre muitos presentes, nos deu este: a gente pode falar mal do Brasil à vontade. Já faz quase 30 anos que a gente pode. Mas parece que a gente só faz isso da vida.

A melhor maneira de não incomodar ninguém é falar mal de todo o mundo. Se eu disser que todos os políticos são corruptos, todo o mundo adora -inclusive, e principalmente, os corruptos, que estão sendo colocados no mesmo saco dos honestos. O discurso do "ninguém presta" parece o discurso mais corajoso do mundo, mas é o mais chapa-branca.

Ninguém se cansa de repetir: "o Brasil não tem jeito", "a corrupção no Brasil é endêmica", "brasileiro não aprende", "o problema do Brasil é o brasileiro". Tudo isso é dito, claro, por brasileiros. Repare que não dizemos: nosso problema somos nós mesmos. Não. O problema do Brasil são os outros, diria Sartre, se fizesse vlogs.

Nunca vi alguém dizer: o problema do Brasil sou eu, que como carne, ando de carro, não reciclo o meu lixo, recebo dinheiro como pessoa jurídica e não lembro em quem votei pra vereador. A culpa é minha, pessoal. Em minha defesa, estou tentando mudar.

Outro dia um autoproclamado filósofo brasileiro que mora nos EUA vociferou: "O povo brasileiro é o povo mais covarde, imbecil e subserviente do universo". E muita gente (brasileira) aplaudiu, provando que talvez ele estivesse certo -mas única e exclusivamente em relação aos seus leitores. Não sei qual é a solução para os nossos problemas, mas se mudar pra Veneza ou pra Virginia certamente não é.

Quantas vezes você já não ouviu a frase: "É por isso que o Brasil não vai pra frente"? Independentemente da razão do nosso atraso, essa frase é uma mentira. Mesmo o crítico mais contumaz do governo (governo este do qual não sou eleitor nem fã) há de concordar que o Brasil vai pra frente, sim. Devagar, aos trancos e barrancos, algumas vezes à revelia do governo -mas vai pra frente. Em contrapartida, nossos intelectuais estão ficando pra trás.


domingo, 18 de maio de 2014


"Fico triste ao ver artistas brasileiros, meus colegas, tão mal informados.

Imagino que, com suas agendas cheias, não tenham muito tempo para procurar diferentes fontes para a mesma informação, tempo para ouvir e ler outras versões dos acontecimentos, isso antes de falar sobre eles em entrevistas, amplificando equívocos com leituras rasas e impressionistas das manchetes de telejornais e revistas ou, pior, reproduzindo comentários de colunistas que escrevem suas manchetes em caixa alta, seguidas de ponto de exclamação.

Fico triste ao ler artistas dizendo que não dá mais para viver no Brasil, como se as coisas estivessem piorando, e muito, para a maioria. Dizer que não dá mais para viver no Brasil logo agora, agora que milhões de pessoas conquistaram alguns direitos mínimos, emprego, casa própria, luz elétrica, acesso às universidades e até, muitas vezes, a um prato de comida, não fica bem na boca de um artista, menos ainda de um artista popular, artista que este mesmo povo ama e admira. 

Em que as coisas estão piorando? E piorando para quem? Quem disse? Qual a fonte da sua informação?

Fico triste ao ouvir artistas que parecem sentir orgulho em dizer que odeiam política, que julgam as mudanças que aconteceram no Brasil nos últimos 12 anos insignificantes, ou ainda, ruins, acham que o país mudou sim, mas foi para pior. 

Artistas dizendo que pioramos tanto que não há mais jeito da coisa "voltar ao 'normal '", como se normal talvez fosse ter os pobres desempregados ou abrindo portas pelo salário mínimo de 60 dólares, pobres longe dos aeroportos, das lojas de automóvel e das universidades, se "normal" fosse a casa grande e a senzala, ou a ditadura militar. Quando o Brasil foi normal? Quando o Brasil foi melhor? E melhor para quem?

A mim, não enrolam. Desde que eu nasci (1959) o Brasil não foi melhor do que é que hoje. Há quem fale muito bem dos anos 50, antes da inflação explodir com a construção de Brasília, antes que o golpe civil-militar, adiado em 1954 pelo revólver de Getúlio, se desse em 1964 e nos mergulhasse na mais longa ditadura militar das américas. Pode ser, mas nos anos 50 a população era muito menor, muito mais rural e a pobreza era extrema em muitos lugares. Vivia-se bem na zona sul carioca e nos jardins paulistas, gaúchos e mineiros. No sertão, nas favelas, nos cortiços, vivia-se muito mal.

A desigualdade social brasileira continua um escândalo, a violência é um terror diário, 50 mil mortos a tiros por ano, somos campeões mundiais de assassinatos, sendo a maioria de meninos negros das periferias, nossos hospitais e escolas públicos são para lá de carentes, o Brasil nos dá motivos diários de vergonha e tristeza, quem não sabe? Mas, estamos piorando? Tem certeza? Quem lhe disse? Qual sua fonte? E piorando para quem?"

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O porquê:
por: Saul Leblon
Carta Maior
Editorial



A impressão de que o governo fala sozinho, cercado por um jogral ensurdecedor, ora raivoso, ora repetitivo, mas de qualquer forma onipresente, não é fortuita.
É isso mesmo, se a percepção se basear apenas na emissão veiculada pelos jornais, tevês e emissoras de rádio que ecoam o monólogo do ‘Brasil aos cacos’.

Mas já foi diferente? Em 1989, talvez, quando o Jornal Nacional editou o famoso debate final da campanha, às vésperas do voto? Ou em 2002, quando George Soros assegurava, com exclusividade para a Folha, que era Serra ou o caos?

Talvez em 2006, sob o cerco do ‘mensalão’? Ou então em 2010, quando a Folha se lambuzou na ficha falsa da Dilma e Serra convocou Malafaia como procônsul para assuntos relativos a moral e aos bons costumes?

Então o que mudou para que o ar pareça tão mais carregado, a ponto de ser necessário, às vezes, cortar com faca o noticiário para enxergar além da derrocada iminente que se anuncia?

Algumas coisas.

Vivemos uma transição de ciclo econômico.

Em parte pela reversão do quadro internacional, em parte pelo esgotamento de suas dinâmicas internas, o desenvolvimento brasileiro terá que se repensar para retomar uma trajetória de longo curso.

Trata-se de recompor as condições de financiamento da economia. E depurar prioridades em direção à maior eficiência logística e melhor qualidade de vida.

Não é café pequeno.

A expectativa provoca arrepios nas carteiras graúdas.

Não será mais possível, por exemplo, prosseguir apenas com o impulso das exportações de commodities, cujos preços triplicaram no mundo desde 2003 --os do petróleo quadruplicaram, mas os agrícolas cresceram mais de 50%.

Tampouco a liquidez internacional promete ser tão generosa a ponto de dissipar as contradições internas em um jorro de crédito apaziguador que tudo sanciona.

Os donos do dinheiro precificam as ameaças incrustradas nesse duplo esgotamento, que escancara a natureza paralisante da hegemonia rentista sobre o país.

Dispostos a não ceder, operam a plenos decibéis para sufocar a evidência de que seu privilégio entrou na alça de mira de uma encruzilhada histórica.

Aconteceu antes, em 32 e 53 – quase como uma revolução burguesa à revelia das elites; foi resolvido com o patrocínio do capital estrangeiro em 55; reprimido em 64; ordenado ditatorialmente nos anos 70 e terceirizado aos livres mercados nos anos 90.

A seta do tempo ensaia um novo estirão.

O desafio, antes de mais nada, é de natureza política.

A coerência macroeconômica da travessia será dada por quem reunir força e consentimento para assumir a hegemonia do processo.

Não por acaso, na abertura do 14º Encontro dos Blogueiros e Ativistas Digitais, nesta 6ª feira, Lula resumiu tudo isso em uma frase:

‘Sem reforma política não faremos nada neste país’. 

E ela terá que ser construída pela rua. ‘Por uma Constituinte exclusiva’, adicionou o ex-presidente da República: ‘Porque o Congresso que está aí pode mudar uma vírgula aqui, outra ali. Mas não a fará’.

Não é um capricho ideológico.

Trata-se de dar consequência institucional às demandas e protagonistas que iniciaram a longa viagem à procura de um outro país, a partir das greves metalúrgicas do ABC paulista, nos anos 70/80.

E que agregaram mais 60 milhões de brasileiros pobres a esse percurso desde 2003.

Um passaporte da travessia consiste em regenerar a base industrial brasileira.

E tampouco aqui é contabilidade.

Para a economia gerar empregos e salários de qualidade, ademais de receita fiscal compatível com as urgências sociais e logísticas, é vital recuperar o principal polo irradiador de produtividade em um sistema econômico.

O pressuposto para um aggiornamento industrial é juro baixo, câmbio desvalorizado e controle de capitais.

Grosso modo, esse é o tripé que afronta o outro, da alta finança, baseado em arrocho fiscal, câmbio livre e juro alto.

Todo o círculo de interesses que orbita em torno do cassino está mergulhado até o pescoço na guerra preventiva contra o risco de uma reciclagem subjacente à eleição de outubro.

Essa é uma singularidade que distingue e radicaliza a presente disputa sucessória --feita em condições internacionais adversas-- a ponto de tornar o ar quase irrespirável.

Por trás dos ganidos emitidos pelo colunismo isento (ideológicos são os blogueiros) há um cachorro grande a soprar seu bafo sobre o cangote da sociedade.

O capital rentista.

Ele lucrou, limpo, acima da inflação, 18,5% em média, ao ano, no segundo governo FHC.

Faturou 11,5%, em média, no segundo governo Lula.

E, já impaciente, entre 3,5% e 5% agora, sob a gestão Dilma.

Estamos falando de massas de forças nada modestas.

Diferentes modalidades de fundos financeiros somaram um giro acumulado de R$ 2,4 trilhões no Brasil em 2012.

O valor equivale a mais da metade do PIB em direitos sobre a riqueza real --sem triscar o pé no chão da fábrica.

Não é um país à parte. Mas se avoca mordomias equivalentes às desfrutadas pelas tropas de ocupação.

Entre elas, rendimentos sempre superiores à variação do PIB, portanto, em detrimento de fatias alheias. E taxas de retorno inexcedíveis -- dividendos permanentes de dois dígitos, por exemplo-- a impor um padrão de retorno incompatível com a urgência do novo ciclo de investimento que o Brasil reclama.

Não se mantém uma tensão desse calibre sem legiões armadas.

Pelotões de estrategistas, exércitos de consultores, artilharias acadêmicas, bancadas legislativas, cavalarias midiáticas e aliados internacionais operam a seu serviço. 

O conjunto entrou em prontidão máxima.

Um pedaço da hegemonia que vai ditar o novo arranjo macroeconômico será decidido nas eleições de outubro.

O embate escorre do noticiário especializado (isento como uma nota de três reais) para os espaços onde os cifrões são traduzidos em duelos entre o bem e o mal, entre corruptos e salvadores da pátria, intervencionistas e liberais, desgoverno e eficiência.

Daí são mastigados para o varejo do martelete conservador.

Nesse ambiente de beligerância em que o governo parece falar sozinho, a explosão de demandas que buscam carona na visibilidade da Copa do Mundo, apenas reafirma uma transição de ciclo, incapaz de ser equacionado por impulsos corporativos ou bandeiras avulsas, ainda que justas (leia mais sobre esse tema no blog do Emir).

‘Não vai ter Copa’ figura como o arremedo de uma unidade tão frágil quanto a aritmética subjacente à ideia de que os males do país se resolvem com os R$ 8 bilhões financiados às arenas do torneio --que serão pagos, ressalte-se.

No evento da sexta-feira, em São Paulo, Lula lembrou aos blogueiros que desde que começaram as obras da Copa, em 2010, o governo investiu R$ 825 bi em saúde e educação.

E, todavia, a escola pública e o SUS persistem com as lacunas sabidas.

O buraco é mais amplo.

O Brasil se confronta com o desafio de realizar grandes reformas que lhe permitam erguer as linhas de passagem entre o inadiável e o viável num novo ciclo de crescimento.

Menos que isso é dar à edição conservadora suprimentos para martelar a ideia de uma sociedade em decomposição.

Durante muito tempo a percolação desse veneno teve na comunicação do governo um filtro complacente.

Agora se sabe que essa inércia escavou também um corredor contagioso no ambiente cultural, a ponto de tornar adicionalmente opressivo o ar desta sucessão presidencial.

Um pequeno exemplo ilustra os demais.

Em entrevista recente à televisão portuguesa, o cantor Ney Matogrosso esboçou um cenário de terra arrasada para descrever o Brasil.https://www.youtube.com/watch?v=DqJ0kF1_oL0. De sobremesa, soltou agudos de visceral rejeição à política, aos políticos e ao PT.

O problema não é um cantor deblaterar contra o governo.

O problema é a ausência de contraponto ao redor, num momento em que interesses graúdos se empenham em vender a tese de que a melhor saída para o Brasil é andar para trás.

Em diferentes capítulos da história do país, o prestígio de seus intelectuais e artistas foi decisivo no repto ao cerco asfixiante com o qual o conservadorismo tentava, como agora, legitimar, ou impor, a receita de arrocho subjacente as suas propostas para os impasses nacionais.

Antes tarde do que nunca, o PT e suas maiores lideranças correm contra o tempo para corrigir o gigantesco erro político que foi subestimar o papel de uma mídia plural na luta pela ampliação da democracia brasileira .

Passa da hora de acordar também para a necessidade de reativar o diálogo com círculos intelectuais e artísticos, cujo protagonismo foi igualmente subestimado por uma concepção mecânica e economicista de desenvolvimento.

O sequestro da opinião pública pelo denuncismo conservador --que radicalizou um clima de indiferença e prostração semeado pelo próprio recuo do PT no ambiente intelectual -- evidencia o tamanho do equívoco cometido.

Leia, abaixo, a manifestação do cineasta Jorge Furtado (diretor do recém lançado ‘Mercado de Notícias’ e Urso de Prata em Berlim, em 1990, com ‘Ilha das Flores’) sobre esses acontecimentos, que marcam e vão marcar o ar pesado da disputa eleitoral de 2014.

'A mim não enrolam' , diz o diretor gaúcho que questiona em seu blog a tese de que o Brasil nunca esteve tão mal: pior em relação a quando e, sobretudo, para quem, argui. http://casacinepoa.com.br/)

O desafio do campo progressista é expandir essa argúcia solitária. 

A íntegra do texto de Jorge Furtado:

"Fico triste ao ver artistas brasileiros, meus colegas, tão mal informados.

Imagino que, com suas agendas cheias, não tenham muito tempo para procurar diferentes fontes para a mesma informação, tempo para ouvir e ler outras versões dos acontecimentos, isso antes de falar sobre eles em entrevistas, amplificando equívocos com leituras rasas e impressionistas das manchetes de telejornais e revistas ou, pior, reproduzindo comentários de colunistas que escrevem suas manchetes em caixa alta, seguidas de ponto de exclamação.

Fico triste ao ler artistas dizendo que não dá mais para viver no Brasil, como se as coisas estivessem piorando, e muito, para a maioria. Dizer que não dá mais para viver no Brasil logo agora, agora que milhões de pessoas conquistaram alguns direitos mínimos, emprego, casa própria, luz elétrica, acesso às universidades e até, muitas vezes, a um prato de comida, não fica bem na boca de um artista, menos ainda de um artista popular, artista que este mesmo povo ama e admira. 

Em que as coisas estão piorando? E piorando para quem? Quem disse? Qual a fonte da sua informação?

Fico triste ao ouvir artistas que parecem sentir orgulho em dizer que odeiam política, que julgam as mudanças que aconteceram no Brasil nos últimos 12 anos insignificantes, ou ainda, ruins, acham que o país mudou sim, mas foi para pior. 

Artistas dizendo que pioramos tanto que não há mais jeito da coisa "voltar ao 'normal '", como se normal talvez fosse ter os pobres desempregados ou abrindo portas pelo salário mínimo de 60 dólares, pobres longe dos aeroportos, das lojas de automóvel e das universidades, se "normal" fosse a casa grande e a senzala, ou a ditadura militar. Quando o Brasil foi normal? Quando o Brasil foi melhor? E melhor para quem?

A mim, não enrolam. Desde que eu nasci (1959) o Brasil não foi melhor do que é que hoje. Há quem fale muito bem dos anos 50, antes da inflação explodir com a construção de Brasília, antes que o golpe civil-militar, adiado em 1954 pelo revólver de Getúlio, se desse em 1964 e nos mergulhasse na mais longa ditadura militar das américas. Pode ser, mas nos anos 50 a população era muito menor, muito mais rural e a pobreza era extrema em muitos lugares. Vivia-se bem na zona sul carioca e nos jardins paulistas, gaúchos e mineiros. No sertão, nas favelas, nos cortiços, vivia-se muito mal.

A desigualdade social brasileira continua um escândalo, a violência é um terror diário, 50 mil mortos a tiros por ano, somos campeões mundiais de assassinatos, sendo a maioria de meninos negros das periferias, nossos hospitais e escolas públicos são para lá de carentes, o Brasil nos dá motivos diários de vergonha e tristeza, quem não sabe? Mas, estamos piorando? Tem certeza? Quem lhe disse? Qual sua fonte? E piorando para quem?"

sábado, 17 de maio de 2014

Até na Justiça, candomblé é alvo de intolerância

Por Jean Wyllys
Revista Carta Capital

A intolerância religiosa e os preconceitos em relações ao candomblé e à umbanda sempre infiltraram os poderes da República e as instituições do Estado que se pretende laico. E talvez pelo fato de essa infiltração ter sido sempre negligenciada, apesar dos seus efeitos nocivos, ela tenha feito desabar um cômodo do Judiciário: a Justiça Federal do Rio de Janeiro definiu que umbanda e candomblé "não são religiões". Tal definição - que mais se parece com uma confissão pública de ignorância - se deu em resposta a uma decisão em primeira instância do Ministério Público Federal que solicitou a retirada, do Youtube, de vídeos de cultos evangélicos neopentecostais que promovem a discriminação e intolerância contra as religiões de matriz africana e seus adeptos, já que o Código Penal, em seu artigo 208, estabelece como conduta criminosa, “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Em vez de reconhecer a existência da ofensa - e não há dúvida para qualquer pessoa com um mínimo de discernimento e senso de justiça de que a ofensa existe - a Justiça Federal do Rio de Janeiro desqualificou os ofendidos; considerou que não "há crime se não há religião ofendida". Para tanto, a Justiça Federal do Rio conceituou umbanda e candomblé como cultos a partir de dois motivos absolutamente esdrúxulos (ou seria melhor dizer a partir de dois preconceitos?): 1) candomblé e umbanda deveriam ter um texto sagrado como fundamento (aqui a Justiça Federal ignora completamente que religiões de matriz africana são fundadas nos princípios da transmissão oral do conhecimento, do tempo circular, e do culto aos ancestrais); e 2) candomblé e umbanda deveriam venerar a uma só divindade suprema e ter uma estrutura hierárquica (aqui a Justiça Federal do Rio atualiza a percepção dos colonizadores do século XVI de que os indígenas e povos africanos não tinham fé, não tinham lei nem tinham rei). Pergunto: Há, na decisão da Justiça Federal, pobreza de repertório cultural, equívoco na interpretação da lei ou cinismo descarado?

Adeptas do candomblé participam da cerimônia em Salvador
A decisão judicial fere claramente dispositivos constitucionais e legais, além de violar tratados internacionais como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 1992 e que dispõe sobre a garantia de não discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões, políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Esse pacto diz ainda que o direito à liberdade de consciência e de religião implica na garantia de que todos são livres para conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como na liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos afirma que ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita unicamente às limitações existentes em leis e que se mostrem necessárias à proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da liberdade.

Ou seja, se há uma liberdade religiosa a ser limitada é a daquelas religiões que usam dos meios de massa para difamar e promover a intolerância contra outras religiões e divulgam práticas que põem em risco a saúde coletiva, como pedir que pessoas abandonem tratamento de câncer ou aids em nome de orações!

Ao ratificar esse Pacto, o Brasil assumiu desde 1992 o papel de um país que tem a obrigação de respeitar direitos. Infelizmente, o Poder Judiciário, que tem a função de "dizer o direito", de aplicar as leis, assim não o fez, simplesmente negando a interpretação dos ditames constitucionais e disposições supranacionais de direitos humanos.

Já foi noticiado que o Ministério Público Federal recorreu dessa decisão, mas precisamos ficar atentos a essas manobras que perseguem, acuam e tentam destruir o que não está de acordo com o que o fundamentalismo religioso determina como correto. E não resta dúvida de que essa decisão judicial é fruto do fundamentalismo religioso que avança sobre os poderes da República. Não podemos nos esquecer de que todos estamos sob a garantia de que podemos promover reuniões livremente para realizar cultos de qualquer denominação - um direito individual e coletivo previsto na Constituição Federal, artigo 5º, inciso VI.

O ataque à umbanda e ao candomblé é também um ataque de viés racista por se tratar de religiões praticadas sobretudo por pobres e negros. Mas é, antes, uma disputa de mercado. O que os fundamentalistas pretendem com os ataques à Umbanda e ao Candomblé é atrair os adeptos - e, logo, o dinheiro deles - para suas igrejas. E como vivemos sob uma cultura cristã hegemônica, que se fez na derrisão e repressão das religiões indígenas e africanas, é óbvio que as igrejas fundamentalistas levam a melhor nessa disputa de mercado e em suas estratégias de difamação.

O que esperamos do Judiciário é o mínimo de justiça que possa colocar freios à intolerância e à ganância dessas igrejas e seus pastores; e possa assegurar a pluralidade religiosa pautada no respeito e sem hierarquias entre as religiões.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

O racismo engolido e a privada matadora


Eu li com certo cuidado o comentário não assinado e publicado em vários periódicos e revistas da imprensa brasileira, que informa aos leitores que Pelé suavizou o caso de racismo contra Daniel Alves no jogo contra o Villareal. O Globo, em sua versão impressa, publicou a notícia (3/5, pág. 36) no caderno de esportes. A notícia ficou escondida, quase ao pé da página. Na web, foi publicado na véspera. Sem assinatura ou referência mais específica, ela diz: “‘Racismo não é no futebol, tem em todos os setores da sociedade. Não dá para pegar uma coisa tão banal de uma carinha que jogou uma banana, e fazer do limão uma limonada’, afirmou Pelé, para quem ‘não há tantos casos de preconceito no futebol’”.

A revista Veja publicou a mesma notícia um dia antes (2/5), e afirmou que a declaração foi feita durante uma “visita a Ribeirão Preto”. E adicionou uma matéria com um título ingênuo e absurdo: “Como Daniel Alves derrotou o racismo”. O subtítulo explica que o lateral brasileiro tratou a ofensa com “fina ironia” e desbaratou o “primitivismo nos estádios de futebol de todo o mundo”. O jogador comeu a banana e venceu o racismo no planeta apenas engolindo um pedaço dela. Simples assim. Comeu a banana e destruiu o racismo na terra. Isso eu chamo de “jornalismo Peter Pan”: ele é infantil e recusa-se a crescer e ver o mundo como ele é.

É muito difícil e duro acreditar que em um momento tão grave para o futebol (que passou a ser o maior palco para demonstrações de racismo no mundo), ainda persistam as tentativas de minimização de insultos e preconceitos étnicos. No caso do Daniel Alves, tudo aconteceu errado desde o início, quando a fruta foi atirada em sua direção. Daniel comeu a banana da humilhação. Ele pode. Ele ganha milhões. Ele pode desqualificar quem o humilha na Espanha, mas na realidade o lateral troca a qualidade de sua vida por dinheiro. Daniel declarou que vive o racismo há 11 anos e que sempre foi assim na Espanha. O que dizer diante disso?

Alienação delirante

A Veja tentou explicar a bizarra solidariedade de Neymar ao seu colega de profissão, time e seleção. Foi o único mérito da matéria. Essa campanha foi resultado da preocupação com o comportamento do atacante da seleção brasileira. Que há poucos anos atrás não apresentava sinais de identificação com sua origem étnica. A reportagem da revista explicou que dois homens, o pai do jogador e um de seus assessores, Eduardo Musa, procuraram a agência de publicidade Loducca, de São Paulo. Desta vez, Neymar iria responder a ofensa com vigor: através de um infeliz hashtag criado pelo sócio e vice-presidente de criação da agência. Foi ele quem teve a ideia de assimilar o insulto com humor, resignação e oportunismo. Tudo na base do pro bono, disse o empresário à revista.

Os dois foram atendidos pela agência, que criou o hashtag #somostodosmacacos, a mais infeliz entre todas as campanhas gratuitas no Twitter. Em pouco tempo, a indigna, incorreta e perigosa mensagem ganhou mundo. O presidente da Itália comeu uma banana. E foi imitado por artistas, celebridades e formadores alienados de opinião. Seu impacto nas redes sociais foi grande e paradoxal: o jogador aparece com uma banana na mão ao lado de seu filho louro. O que se pode concluir daí? Que o racismo com Neymar “não cola” porque ele tem um filho de cabelos claros?

A coisa terminou mal: Neymar tentou amenizou o insulto transferindo-o para todo o povo brasileiro como piada no Twitter, publicada em quatro línguas: inglês, espanhol, português e catalão. Muita gente boa caiu no conto e aceitou a injúria. Essa campanha do Neymar no Twitter foi um insulto a todos que querem ver o mundo e o futebol livres do racismo. A quem não aceita rir ou conviver com ele. Racismo não pode ser combatido com gracejos ambíguos, ou derrotado por “fina ironia”. Ativistas afrodescendentes e outros inimigos do racismo denunciaram o cinismo de Neymar e a alienação delirante de Pelé. Que acredita que a imprensa exagera quando expõe o óbvio crescimento do racismo no futebol.

Espetáculo degradante

A campanha foi exposta. O pequeno jornal socialista A Verdade (3/5) acusou a Daniel e Neymar de banalizarem o racismo: “Desde pequenos, somos ensinados a tratar insultos racistas como piada, a ‘levar na esportiva’, a considerar tudo uma grande ‘brincadeira’ e, portanto, ‘normal’. Prova disso foi o que fez Pelé, grande parceiro da Fifa e das mega corporações esportivas internacionais, ao afirmar que ‘Daniel Alves foi vítima de ato banal’. Não, Pelé, racismo não é algo banal; é uma coisa muito séria. Causa sofrimento e mortes em todo o mundo. Esse tipo de postura e reação despolitizadas e alienantes de atletas, artistas, formadores de opinião e governantes tem um objetivo certo: banalizar o real significado do racismo em nossa sociedade, o que dá mais força pra que ele continue existindo.”

A reação dos militantes afrodescendentes não teve muita atenção na mídia. Não encontrou espaço equivalente a sua importância na imprensa. A maior parte dela aceitou bem a ofensa. Gostou da brincadeira de forma despicienda. A crítica ficou restrita a instituições civis ou blogs de ativistas dos movimentos negros e de direitos humanos. Que assinalaram o estrago que Pelé e Neymar trouxeram aos anos e anos de lutas no combate ao racismo, e trouxeram as vozes daqueles que lutam pela união de todas as etnias sem discriminação ou preconceito, e de todos que anseiam por um mundo melhor onde seja possível a convivência na diversidade.

O Instituto da Mulher Negra (28/4) publicou o contundente artigo de Higor Faria. Que não aliviou nada para o Neymar:

“Neymar ‘tá’ empurrando para o lixo anos e anos de luta antirracista. E nem acho que ele esteja ligando muito para a m***a que fez. O racismo nos campos de futebol sempre existiu e agora têm ganhado bastante espaço na mídia. Os veículos até então não tinham encontrado um rosto que estampasse a luta contra esse tipo de discriminação sem afetar seus interesses. Neymar percebeu a oportunidade, agarrou como a banana na foto e provavelmente será esse (sic) rosto: mais visibilidade para o afroconveniente de ouro.”

Faria matou a charada: a campanha de Neymar foi bastante conveniente para a Fifa, que precisava de um rosto amistoso e atitude submissa naquele momento delicado. Alguém capaz de rebater o racismo de forma branda para não assustar ainda mais os anunciantes e o público que o Brasil espera trazer para a Copa.

Racismo não se combate com gentilezas, ironias sutis e piadas. Nem mesmo a ciência é suficiente para provar a certas pessoas que somos uma só espécie e que “raça” não é uma categoria científica. Que o ser humano não tem subespécies e nossas diferenças aparentes são produto do maior ou menor grau de isolamento geográfico que os diferentes grupos étnicos experimentaram ao longo da história. Insultos racistas não podem ser minimizados e tratados como brincadeira, ou como algo que podemos viver e esquecer como se fosse apenas uma brincadeira trivial. O futebol mundial não pode ser transformado em uma praça de exibição de comportamentos, ofensivos à dignidade humana. O esporte que já foi chamado de “jogo bonito” não pode transformar-se em um espetáculo que degrada e diminui a condição humana.

Um morto e três feridos

Infelizmente, as coisas não estão melhorando no futebol brasileiro. Eu já estava a fechar a matéria, quando levantei da cadeira e fui buscar o jornal de domingo (O Globo, 4/5). Foi quando notei a curiosa nota, mais uma vez impressa em local de difícil acesso visual: na capa, mas lá em baixo. Muito em baixo. Pouca gente deve ter lido o curioso título: “Vaso sanitário mata torcedor”. O subtítulo informava que “um torcedor morreu ao ser atingido por um vaso sanitário atirado de Estádio do Arruda, em Recife”. Procurei pela matéria (pg.39), e li que dois vasos sanitários foram atirados de uma altura de 24 metros sobre torcedores, depois da partida entre Santa Cruz e Paraná. O jovem Paulo Ricardo Gomes da Silva, de 26 anos, foi “atingido no meio da rua”, informou o jornal. Ele estava tentando fotografar o confronto da torcidas rivais do Sport e do Santa Cruz no “Arrudão”(o estádio do Santa Cruz), quando os dois vasos sanitários foram atirados do alto do estádio. Um deles atingiu Paulo Ricardo. Que morreu na hora.

A notícia correu o mundo: a BBC publicou, o Huffington Post também. Além do tabloide inglês The Daily Mail, a CNN, o Sydney Morning Herald, da Austrália, e outros periódicos esportivos importantes. A BBC (3/5) informou que “no início deste ano torcedores do Santa Cruz arremessaram vasos sanitários contra seus rivais locais do Sport”. O que há com esses torcedores alucinados? Estão tentando inventar mais um “esporte radical”, o arremesso de privadas?

O site da BBC cometeu um erro muito comum em jornalismo: segundo o autor da matéria, “outras três pessoas foram supostamente feridas”. Como assim “supostamente”? Este advérbio não cabe aí. É uma suposição. Seu uso denota incerteza, ambiguidade ou descompromisso com o assunto abordado. Não é assim que se informa. O site do Globo Esporte (2/5) de Pernambuco acabou com a insegurança da emissora inglesa: “Além da vítima fatal (sic), outras três ficaram feridas. Uma em estado grave. Vanderson Wilderlan Gomes, nascido em 1992, sofreu cortes na cabeça e nas pernas e foi encaminhado para o Hospital da Restauração, zona central do Recife. O quadro dele inspira cuidados, mas não corre risco de morte. José e Adrien Ferreira de Lima, nascido em 1993, e Tarkini Kauã Gonçalves de Araújo, nascido em 1994, machucaram as pernas e seguiram para o Hospital Getúlio Vargas.”

Hora de acabar com a Fifa

O Huffington Post (5/3) informou que nenhum jogo da Copa do Mundo acontecerá naquele estádio. Os cinco jogos programados para Recife serão disputados na Arena Pernambuco, que foi construída para hospedar os jogos do certame. O site noticioso também comentou a violência no futebol brasileiro: “Violência envolvendo grupos de torcedores é comum no Brasil, e o número de incidentes aumentou ano passado. A Fifa e as autoridades brasileiras têm minimizado as preocupações sobre violência dentro dos estádios durante a Copa do Mundo, dizendo que a segurança será reforçada e que esses incidentes estavam relacionados principalmente a jogos entre clubes.”

Eu não poderia deixar de fora a cobertura detalhada e meio sanguinária de um tabloide inglês. Que apresentou uma foto do jovem morto, cercado de pedaços da porcelana do vaso despedaçado que lhe tirou a vida. De acordo como Daily Mail Online (4/5), a imprensa local informou que o rapaz esteve envolvido em disputas com a torcida rival, Cita como fontes emissoras locais.

Eu encontrei uma reportagem do Jornal do Comércio de Pernambuco (3/5), publicada com o apoio da Rádio Jornal, onde está registrada a presença de Paulo Ricardo entre a torcida do Paraná. Ele fez uma foto onde exibiu uma bandeira de uma torcida organizada do Sport, a “Fúria”, durante o jogo, e na torcida do adversário. Coisa grave. O periódico informou que “o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa está investigando o caso”.

A morte do jovem torcedor pernambucano não foi associada de forma direta a violência durante a Copa. As dúvidas que a mídia estrangeira tem expressado são a mesmas de sempre. O mundo todo conhece a violência do nosso país e de nossos torcedores. Mas todos também conhecem a segregação por renda, e o preço salgado dos ingressos, somado ao espetacular aparato de segurança ao redor dos estádios durante os jogos devem garantir a realização dos jogos da Copa do Mundo. Que antes mesmo de começar já é a mais estranha e estigmatizada da história do futebol.

Será que não é hora de acabar com a Fifa e seus torneios enormes, extravagantes e fora do lugar em nossos tempos? Não chegou a vez de criarmos outra organização que substitua a Fifa viciada e corrupta, e que organize torneios menores, menos danosos e comprometidos com interesses do comércio mundial e sua sede de lucros? Eu não tenho as respostas, mas uma coisa eu garanto: nunca pensei que estaria tão desapontado e desanimado quando o Brasil hospedasse outra Copa do Mundo.


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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor