quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Duas da Cynara e outras duas observações

Folha de S. Paulo - 1984

Por  Cynara Menezes
Do (ótimo) blog Socialista Morena, revista Carta Capital

Adeus, jornais impressos

Caí de amores pela Folha de S.Paulo aos 17 anos, em 1984, quando entrei na faculdade e o jornal apoiou a campanha pelas Diretas-Já. Até então, menina do interior da Bahia, não conhecia bem a grande imprensa. O jornal que estampava em sua primeira página o desejo de todos nós, brasileiros, de votar para presidente, me cativou. Como para vários da minha geração, trabalhar na Folha se tornou um sonho para mim.

E de fato trabalhei no jornal, entre idas e vindas, quase 10 anos. Tive espaço, ótimas oportunidades, conheci de perto figuras incríveis: Ulysses Guimarães, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Lula. E principalmente: na Folha escrevi como quis –ninguém nunca mudou meu texto e jamais adicionaram nem uma frase sequer que eu não tenha apurado, ao contrário do que viveria nos oito meses que passei na Veja (leia aqui).

Em 2009 meu respeito pela Folha morreu. Naquele ano, o jornal publicou um artigo absolutamente execrável acusando Lula de ter tentado estuprar um companheiro de cela, um certo “menino do MEP” (antiga organização de esquerda), quando esteve preso, em 1980. Qualquer pessoa que lê o texto percebe que Lula fez uma brincadeira (de mau gosto, ok), mas o autor do artigo não só levou a sério, ou fez de conta que levou a sério, como convenceu o jornal a publicar aquele lixo.

Como eleitora de Lula, aquilo me incomodou. Por que nunca fizeram algo parecido com outro político? Por que o jornal jamais desceu tão baixo com ninguém? Apontar erros, incoerências, fazer oposição ao governo, vá lá. Dizer que Lula estuprou uma pessoa! Por favor. Me pareceu que alguém na direção do jornal estava sob surto psicótico ao permitir que algo assim fosse impresso. Vários amigos da Folha me confidenciaram vergonha e indignação com o texto.

Continuei a ler o jornal nestes últimos quatro anos mais por hábito do que por outra coisa. Quando veio o editorial em que a ditadura foi chamada de “ditabranda” não fiquei surpresa. Quando a Folha publicou a ficha falsa da candidata Dilma Rousseff no DOPS quando atuou na luta armada, tampouco. A minha própria ficha já tinha caído, lá atrás. O jornal a favor das Diretas-Já deixara de existir –ou será que nunca existiu? Afinal, antes disso a Folha havia apoiado o golpe militar. Terei eu caído num golpe –de marketing?

Hoje, 24 de outubro de 2013, tomei a iniciativa de cancelar minha assinatura da Folha de S.Paulo. O jornal acaba de contratar dois dos maiores reacionários do País para serem seus “novos” colunistas. Não é possível, para mim, seguir assinando um jornal com o qual não tenho mais absolutamente nenhuma identificação. Pouco importa que minha saída não faça diferença para o jornal: é minha grana, trabalho para ganhá-la, não vou gastá-la em coisas que não valem a pena. O mundo não é capitalista? Pois não quero, com meu dinheiro, ajudar a pagar gente que me causa vontade de vomitar.

O mais triste é que, ao deixar de assinar a Folha, deixo também de ler jornais impressos. Nenhum deles me representa. Esta é literalmente uma página que viro, dá a sensação de que perdi um amigo querido. Mas a vida é assim mesmo: às vezes amigos tomam rumos diferentes. Sem rancores.

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Por que entrei na Veja. E por que saí

No final de 1997, após minha aventura espanhola –economizei um dinheirinho e fui estudar Literatura Espanhola e Hispanoamericana em Madri–, voltei ao Brasil para morar em São Paulo. Desempregada, fui convidada por uma grande amiga a fazer um frila para a revista Marie Claire, onde ela era editora: uma entrevista com o pré-candidato a presidente Ciro Gomes que acabou sendo um dos mais marcantes trabalhos da minha carreira. Ciro abriu a alma, talvez mais do que gostaria, e a matéria de uma revista feminina surpreendentemente repercutiu em todos os jornais.

O sucesso foi tão grande que aquela entrevista, publicada na edição de janeiro do ano seguinte, foi a responsável por minha reinserção no mercado brasileiro após dois anos fora. Fui sondada por alguns veículos e acabei sendo convidada para voltar à Folha de S.Paulo, onde havia trabalhado na sucursal de Brasília, para ocupar uma vaga na editoria de Cotidiano. Meses depois, mudei para a Ilustrada, que almejava quando fui para a Espanha. (Qualquer hora tiro um tempinho para digitar a entrevista com o Ciro e postar aqui para vocês. É muito divertida.)

Sete anos mais tarde, em maio de 2004, eu estava havia apenas três meses trabalhando no Estadão quando a mesma querida amiga me procurou para fazer um convite: iria assumir a editoria de Brasil da revista Veja e queria que eu fosse para lá fazer coisas bacanas, reportagens especiais, entrevistas. “Quem você gostaria de entrevistar?”, ela perguntou. Respondi que sempre quis entrevistar Diego Maradona sobre política. Até hoje acho que seria uma entrevista e tanto. Ela ficou entusiasmada e eu também. Mas e hard news?, perguntei. Este nunca foi meu forte. “Ah, você vai ter que fazer, mas ocasionalmente”. Pensei uns dias e topei. Lembro que até comprei, num sebo de São Paulo, um livro de Oriana Falacci, a grande entrevistadora italiana, para me inspirar…

Costumo dizer que existem dois tipos de repórteres: os que têm boas fontes e apuram muito, mas têm um texto apenas razoável, e os que não têm tantas fontes nem são incríveis apuradores, mas escrevem bem. Eu não tenho fonte nenhuma e apuro o suficiente; o texto é o diferencial. Portanto, o primeiro choque para mim após a estreia na Veja foi que a alentada matéria de capa sobre corrupção que eu e dois colegas apuramos não foi escrita por nós. Eu escrevi o texto inteirinho. E ele foi inteirinho modificado para publicação. Obviamente não recebi aquilo de bom grado, mas uma colega que estava lá há mais tempo me acalmou dizendo que logo eu “pegaria o jeito” para escrever no estilo da revista e não mexeriam tanto no texto.

Bom, hoje sei que nunca iria “pegar o jeito” de escrever da Veja porque, para começo de conversa, não é o meu. Meus textos em geral têm bastante aspas, adoro colocar frases boas de entrevistados e especialistas para dar um colorido. Na Veja, podem reparar, os textos quase não têm aspas, é tudo assumido pelo redator. Além disso, tem uns clichês do tipo “os números impressionam” que eu não conseguiria incluir num texto meu nem que trabalhasse lá durante 100 anos.

Vi, de cara, que tinha entrado numa enrascada, que só piorou quando me destacaram para cobrir a campanha de Marta Suplicy à reeleição em São Paulo. Não havia ninguém no PT que aceitasse falar com a Veja. As fontes das reportagens tinham que ser pessoas, mesmo dentro do partido, de oposição à prefeita. Eu fazia a apuração possível, mas absolutamente nenhum daqueles textos foi escrito por mim. Àquela altura, eu só pensava num jeito de sair da Veja sem ficar desempregada –afinal, eu acabara de entrar no Estadão quando decidi ir para lá. E tinha um filho para criar, não sou nenhuma filhinha-de-papai para me dar ao luxo de ficar sem trabalhar.

Para driblar as dificuldades, minha amiga e chefe escalou outra repórter para trabalhar em parceria comigo: eu fazia a apuração pelo lado petista a partir de uma pauta sugerida por mim e ela redigia o texto e apurava o lado do PSDB, incluindo os obrigatórios elogios ao tucanato, como na reportagem dos políticos “picolés de chuchu”. Quem acompanha meu trabalho há mais tempo sabe que essa é uma pauta tipicamente minha, para tirar sarro de políticos. Foi transformada por Veja em uma peça de bajulação a Geraldo Alckmin –reparem que a reportagem em questão é assinada em dupla com outra pessoa, assim como várias outras do meu curto período na revista.

Algumas alterações foram menos dramáticas: o perfil do advogado Kakay, apesar de nenhuma frase do texto ter sido escrita por mim, pelo menos manteve-se fiel ao que apurei, não tem nada do que me envergonhe ali. A hilária história do “embargo auricular” foi descoberta minha, e já foi citada em vários perfis dele depois. Mas o único texto integralmente meu, desde o título, é a ótima entrevista que fiz com a namorada do senador Eduardo Suplicy, Mônica Dallari. Um furo. Sou, antes de tudo, uma repórter. E minha maior especialidade (é a segunda vez que volto a elas neste texto) sempre foram as entrevistas. Tenho um belo portfólio, modéstia à parte: escritores, políticos, atletas, cineastas.

Em revista, mais do que em jornal, pode acontecer de o redator-chefe modificar um pouco seu texto, isso não é incomum. Mas o difícil de tolerar em Veja, para mim, além de eles mexerem no texto todo, eram as torcidas de raciocínio. Certa vez, fui convocada a colaborar em uma reportagem sobre educação e me pediram alguém para falar sobre cotas. Lembrei de um antigo colega da faculdade que era do movimento negro, liguei para ele e peguei uma frase favorável às cotas. Qual não foi a minha surpresa quando a autora do texto simplesmente transformou a frase dele em contrária às cotas! Fiquei furiosa e felizmente, neste caso, consegui reverter. Mas o pior estava por vir.

Quando as discussões com minha chefe começaram a desandar em gritaria na redação, decidi que estava na hora de sair. Escrevi um e-mail para ela dizendo que preferia manter sua amizade e me demiti da revista. Ela aceitou, me pediu um mês para arranjar outra pessoa e saiu de férias. Neste meio tempo, me pediram uma matéria sobre as dívidas que Marta Suplicy deixaria a seu sucessor na prefeitura de São Paulo, que não eram mesmo coisa pequena. Mas no texto aconteceu algo pelo qual nunca passei em mais de 20 anos de carreira: foi incluída uma frase, entre aspas, que não apurei.

Em 14 anos de Folha de S.Paulo, entre indas e vindas, como repórter fixa ou colaboradora, jamais modificaram um texto meu desta maneira. Em seis anos de CartaCapital, muito menos. Em nenhum lugar onde trabalhei aconteceu algo nem sequer parecido. Está lá a frase, no primeiro parágrafo da matéria: “Parece a madrasta de Cinderela”. Não sei quem disse isto. Eu não a ouvi de ninguém, mesmo porque não tenho ascendência italiana nem conheço ninguém em Roma. Quando minha chefe chegou de férias, me encontrou arrasada. Tenho certeza que, se ela estivesse ali, a frase não teria aparecido magicamente no texto. Detalhe: não me importaria de fazer uma reportagem crítica ao PT ou a quem quer que fosse, desde que eu a tivesse escrito –e que fosse verdade. Isso se chama profissionalismo.

Felizmente, almas boas me ajudaram a sair da Veja logo depois das férias coletivas de final de ano, e em fevereiro eu começaria na revista VIP, onde já havia atuado como colunista, no ano anterior. Passei dois anos e meio na VIP, de onde não tenho nenhuma queixa, pelo contrário. Voltei a ter a coluna, fiz matérias engraçadas e algumas entrevistas bobas com bonitonas da capa, mas também com pessoas interessantíssimas, como o cineasta Hector Babenco, o jogador Zico e o produtor musical Nelson Motta, entre outras. (Com o tempo, postarei elas aqui, na seção vintage do blog.) Ironia: enquanto na Veja o que escrevia era trucidado, na VIP uma coluna minha concorreu ao prêmio Abril de 2006 como melhor texto do ano na categoria artigo.

Uma tarde, na VIP, uma das advogadas da editora Abril entrou em contato comigo para me comunicar que Marta Suplicy estava processando a Veja por conta daquela reportagem, e me perguntou quem foi o “jornalista italiano” que me disse a frase. Perguntei se tinha conhecimento de que as matérias da Veja eram mexidas depois de escritas, e ela me disse que sim. Falei, então, que não fora eu quem apurara aquela história e não tinha falado com jornalista italiano algum. Nunca soube o resultado do processo.

Se você me perguntar: mas isso acontece com todos os jornalistas que trabalham na Veja e eles aceitam, são coniventes com essa prática? Não sei, só posso falar por mim. Não sou o tipo de jornalista que coleciona inimigos. Coleciono amigos, essa é minha natureza. Tenho amigos em todos os lugares em que atuei como repórter, inclusive na Veja. Posso dizer que tem vários jornalistas excelentes na revista, por quem tenho apreço genuíno – minha querida amiga, por exemplo. Mas desprezo o veículo onde trabalham. Tenho razões de sobra para isso. Sinto consideração e carinho por todas as redações por onde passei. Respeito a editora Abril. Veja, não.

E sabem o que é pior disso tudo? Nunca entrevistei Maradona.


Cynara Menezes é jornalista e editora do blog Socialista Morena, na Carta Capital.

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OBS.: Eu tenho a mesma fascinação pela Folha, assinava até. Infelizmente, em Mesquita, Baixada Fluminense, poucos a leem (bem, acho que não era apenas eu) e isso tornou inviável (para o diário) a sua entrega. A Morena pelas tantas manchates, eu, por ser um jornal muito bem escrito, diagramado, com cadernos culturais que dão banho nos outros (O Globo não chega perto do cheiro). Até me inscrevi online, certa vez, para trabalhar na Folha (eles nunca me chamaram, é certo). Assim como a Morena, nutro a mesma decepção. Uma pena um jornal com essa grandeza ficar fadado a virar a Veja.

OBS2.: A Veja... Bem, escrevo apenas isso: uma vez o A. Nunes escreveu uma besteira sobre o Lula não ter o hábito da leitura. Aliás, dizer que o Nunes escreve besteira é uma redundância. Digitei no comentário, daquele artigo específico, o verso "Eu presto atenção ao que você diz, mas você não me diz nada", do (ou quase do) Humberto Gessinger. O que sai publicado? Isto: "Eu presto atenção ao que você diz." 
Preciso dizer mais alguma coisa sobre este panfleto reacionário?

 

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