quinta-feira, 24 de abril de 2008

Observatório da Imprensa


Se o pão é pouco, aumente-se o circo
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Por Carlos Brickmann, em 22/4/2008
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Já se falou, sobre o caso, do filme A montanha dos sete abutres; lembremos agora o imortal samba De frente pro crime, dos grandes João Bosco e Aldir Blanc.
Diante do corpo estendido no chão, "o bar mais perto depressa lotou/ malandro junto com trabalhador/ um homem subiu na mesa de um bar/ e fez discurso pra vereador".
A menina Isabella, 5 anos, morreu estendida no chão, atirada pela janela de um prédio. O crime comoveu São Paulo; a audiência dos telejornais subiu 46%. E, na guerra de audiência, vale tudo: vale provocar comoção popular, vale juntar multidões em frente à casa dos parentes da menina morta, vale dizer o horário em que o tio da prima da vizinha do porteiro almoçou, vale transformar tudo em espetáculo. Sigilo do processo? Besteira: as autoridades devem estar roucas de tanto dar entrevistas. Chegou-se ao extremo de providenciar banheiros químicos e uma tenda, gastando dinheiro público, para atender à multidão de curiosos que se aglomeraria em frente ao local onde dois suspeitos prestariam depoimento.
"Veio um camelô vender pastel/ cordão, perfume barato/ E a baiana pra fazer pastel/ e um bom churrasco de gato/ Quatro horas da manhã, baixou/ um santo na porta-bandeira/ e a moçada resolveu parar, e então/ tá lá o corpo estendido no chão."
Há tempos, em algum lugar do país, num desses casos rumorosos, um advogado procurou o delegado que tomaria o depoimento de seu cliente e lhe perguntou se era possível comparecer à delegacia sem alarde, sem multidões. O delegado disse que não: recebera ordens "de cima", para avisar o horário do depoimento, e permitir que os "de cima" chamassem imprensa e multidão. As autoridades se aliam à imprensa para transformar a investigação em show, a punição dos culpados em linchamento, a Justiça em espetáculo. Instiga-se a população a descrer do processo judiciário democrático e a pedir justiça com as próprias mãos.
Quem matou Isabella? Há dois suspeitos e uma certeza: se a investigação não seguir os caminhos corretos, legais, discretos, com coleta de provas, com a construção precisa e científica da acusação, será difícil ter a resposta. Afinal de contas (e isso se sabe desde o episódio de um certo Barrabás, ocorrido há muito tempo, quando nenhum de nós havia ainda nascido) berreiro nas ruas não é justiça.
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Prender, condenar
Autoridades e imprensa formam, nesse tipo de caso, um casal inseparável: um não existe sem o outro. A TV não pode viver exclusivamente das informações sobre o cardápio do café da manhã do tio de um dos suspeitos; precisa de autoridades prestando declarações indignadas. As autoridades precisam da imprensa para aparecer na TV e nos jornais, para desfrutar os instantes de fama, para ganhar prestígio junto aos escalões superiores. E, enquanto um desfruta do outro, esquece-se o importante: a juntada de provas. Depois, quando o acusado é absolvido, vem aquela conversa surrada de que a polícia prende e a Justiça solta. Não é bem assim: não há juiz que deixe de condenar se houver provas concretas.
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A voz do advogado
Texto sobre o caso Isabella, publicado no portal Migalhas, na segunda-feira (14/4), assinado pelo advogado Edgard Silveira Bueno Filho, do escritório Lima Gonçalves, Jambor, Rotenberg & Silveira Bueno:
"Não sou advogado criminalista. Não tenho qualquer interesse no caso, mas não consigo não me indignar com esses abusos que são cada vez mais freqüentes em nosso país. Temos que nos decidir se somos ou não somos um estado de direito que, antes de julgar as pessoas, deve observar o devido processo legal. Senão, é o caso de voltarmos ao estágio da vingança e do apedrejamento em praça pública. Mas não reclamemos quando a vítima vier a ser um de nós."
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O caso Cabrini
Culpado ou inocente?
Se este colunista soubesse a resposta, todo o pessoal da polícia que se dedica à investigação e elucidação de crimes poderia aposentar-se e ficar em casa. E o problema, numa coluna dedicada a comentários sobre a imprensa, é outro: é o que está sendo divulgado sobre o caso do jornalista Roberto Cabrini.
Há muita coisa esquisita na história. Primeiro, tudo o que este colunista já leu sobre drogas indica que pessoas de bom poder aquisitivo não vão a locais perigosos para fazer suas compras: têm o privilégio de recebê-las a domicílio, entregues por pessoas bem-vestidas e de aparência insuspeita. Segundo, não compram drogas "picadas", mas em quantidade suficiente para algum tempo de consumo. O livro de Nélson Motta sobre Tim Maia, por exemplo, em várias passagens faz referências a sacolinhas de cocaína, a pacotes (ou latas) de maconha.
Terceiro, a história do carro. Tudo bem, um belo automóvel importado num lugar estranho merece investigação. A polícia se aproxima, o dono do carro mostra seus documentos em ordem, diz que está lá por livre e espontânea vontade, não há ninguém por perto a ameaçá-lo. Por que, então, revistar o carro?
A história de Cabrini também é curiosa. Pode ser que, para conquistar a confiança do tráfico, tenha cheirado alguma coisa. Às vezes acontece. Aliás, se fosse viciado, teria a saída pronta: sou viciado, sim, preciso de ajuda e tratamento, não tive a coragem de fazê-lo até agora por ser uma pessoa pública, e peço que os sacerdotes da Igreja Universal, ligada à Rede Record, me ajudem a sair deste problema. Ao não optar por essa solução, Cabrini mostrou a confiança que tem em sua história.
O que se espera é que a imprensa, no caso do colega, se comporte como se fosse uma pessoa de outro ramo: acompanhe as investigações, noticie, comente, sem a preocupação de atingir um concorrente ou de beneficiar um companheiro. E, claro, sem deixar que a eventual inveja do colega que ganha bem e tem notoriedade influencie a cobertura. É difícil; mas o próprio caso de Pimenta Neves, jornalista bem pago e bem sucedido, que matou a ex-namorada, mostra que a imprensa é capaz de noticiar seus problemas com correção e isenção.
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(...)

4 comentários:

Jens disse...

Bela escolha, Marcelo. O Carlinhos Brickmann é um dos melhores observadores da imprensa do Observatório, junto com o Luiz Weis.
Um abraço. Bom findi.

Loba disse...

ah marcelo, ando tão cansada deste caso, viu? como qq ser humano normal, sinto aquele horror natural frente a um crime como este. mas crimes como este acontecem diariamente. fico me perguntando porque a mídia não usa seu poder de quase onipresença na vida do povo para trabalhar sobre a prevenção - neste caso, a violência contra crianças que é absurdamente grande em nosso país.
Li uma crônica do Calligaris que traduziu perfeitamente o que sinto em relação a tudo isso: a turba do pega e lincha. Não sei se vc leu, mas vale a pena.
Um beijo!

dade amorim disse...

Muito bem apanhada, a crônica do Brickmann. O texto do Calligaris de que fala Loba também é perfeita, uma visão psicanalítica da turma do pega e lincha. A sensação que a gente tem é de que está tudo errado, e de que a pobre Isabella foi uma espécie de mártir de uma sociedade doente, que mata suas crianças e depois quer linchar os assassinos em que projeta seus próprios crimes, numa espécie de catarse. Pior do que tremor de terra, que ao menos a gente pode entender objetivamente.
Argh. Ninguém aguenta mais, não o caso em si, mas o Grande Caso que nenhuma polícia vai resolver.

Marcelo F. Carvalho disse...

Jens, Eu também gosto muito do Brickmann, acho que poucos analistas midiáticos conseguem escrever e adentrar na profundidade com tanto sarcasmo de alto nível e com a fina flor da ironia.
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Loba e Adelaide: Tinha passado batido pelo Contardo Calligaris, mas o texto é realmente maravilhoso. Penso em postá-lo aqui, dando um final a essa "trilogia sem-querer" desde a análise com Veríssimo, fechando com o Contardo... Obrigado!