sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Vivendo

 Ela era meio estabanada, ria meio sem querer, um sorriso grosso e feio e tinha a boba mania de esconder a feminilidade por achar ser fraqueza.
Ele era desajustado com o mundo, como qualquer adolescente sincero, achava-se mais inteligente do que realmente era e escondia o nervosismo do ato sexual como qualquer outro.
Ela gostava de Raimundos e usava camisa flanelada para parecer radical e usava frases de efeito bastante masculinas para se impor no meio da tribo compensando, assim, a sua baixa estatura e rosto afilado.
Ele gostava de Legião e, claro, queria ter uma banda, queria viver de Literatura, queria ir a Cuba. Achava a Italia o país mais romântico do mundo e dizia que depois de Drummond, nada mais importava.
Ela falava bem o inglês, era boa em Biologia e simpatia.
Ele era apaixonado por ela.
Ela soube disso muito tempo depois dele remoer esse sentimento até ao ponto de escrever três poemas melados e quarenta noites doídas ouvindo Andrea Doria, Quase um Segundo, Hey Jude. Ele encheu-se de uma coragem boba e contou depois de fumar o maço de John Player Special inteiro e ficar com um bafo troglodita. Ela não o beijou de imediato. Levou uns três dias. E foi lindo.
Ele era apaixonado por ela.
Isso levou uns três meses. Uns amaços no sofá, umas filosofias bobas sobre flor e Paulo Coelho, uma carícia única.
As aulas acabaram e com elas, o namoro de portão dos dois.
Ela foi viajar e passou todo o final do ano ao lado da família e dos novos e inesperados caminhos que tropeçam quando estamos respirando. Ele curtiu uma fossa filha-da-puta e levou um tempão para compreender o óbvio ululante: ala não o amava e ele precisava sair daquela merda.
Eles estão casados com outros e ela deixou de ser desajeitada. Ele deixou de ficar nervoso com o sexo. Ele está apaixonado pela 89ª vez.

Ambos tropeçando em caminhos espalhados por aí. Vivendo.


segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Aquele olhar


Meteu as mãos nas suas coxas e sussurrou alguma coisa que o deixou excitadíssimo. E eram aqueles olhos quase em cima dele como duas presas despretensiosas e mortais. Ele engoliu o chope como se estivesse bebendo água ardente e quase sacudiu a cabeça para acionar a ignição do raciocínio, da lógica, mas aquelas mãos na coxas, aquele sussurro e, puta-que-pariu!, aqueles olhos! Eram demais para ele!
Levantou-se da cadeira como quem acorda de supetão por um susto que não se sabe de onde veio, foi até o banheiro jogar uma água no rosto, olhar para dentro da consciência, visível apenas quando de frente ao espelho, e voltar com alguma dignidade à mesa. “Que horas faltam, hein? Será que ninguém vai chegar?” Só deus sabe o quanto ele queria que a hora passasse. Seus amigos não chegavam e o marido da Vanessa, sua, agora, ex-amiga, também não dava sinais de vida. E eram os dois ali, naquela mesa de bar, aipim frito com carne seca desfiada e acebolada, uma terceira rodada de chope da Brahma com espuma cremosa e na medida, aquele calor do Rio de Janeiro, a praia em frente com cheiro de sal e sensualidade, e ele e ela. Ela com as mãos na sua coxa (outra vez!), ele a ponto de transpirar, constrangido pela situação de estar excitado e o cagaço de ser pego – uma mistura psicotrópica.
Ela encostou um dos cotovelos na mesa e descansou o rosto na mão fechada, feito um soco, a outra continuou na coxa num movimento de ida e volta. Ele falou alguma coisa sobre a luz do ambiente ser de uma cor esquisita e simpática à penumbra. Ela sorriu e fechou os olhos como que navegando em outros prazeres ou deliciando-se com aquele momento tão insípido para ele mas que, talvez pelo sangue agitado, talvez pelo escancarar da porta de Freud, detivesse-no ali, daquela forma, mesmo sabendo-se arrastado para o que não tem mais volta.
“Eles não vêm, não é mesmo?”
“Acertou na mosca”.
E beberam a quarta rodada de chope. Ele pediu mais colarinho do que o de costume e longe do que marca a etiqueta da boa tirada. Era um modo de se iludir, de enganar a si mesmo já que beberia outras seis rodadas depois dessa; é como furar o filtro do cigarro para diminuir o veneno e fumar o maço inteiro.
Ela pediu uma caipirinha, mas de vodca. “Uma caipivodca, por favor”. Ele mandou tudo aos caralhos e decidiu por um uísque. “...duplo e só duas pedras de gelo”. Foi a última coisa que conseguiu se lembrar depois de abrir os olhos no seu apartamento e reparar que ainda usava sapatos. Pedira outras duas doses, mas isso era irrelevante, pois só nós sabemos disso. O gosto de guarda-chuva o incomodava e teve que ir ao banheiro, tomar um banho, um café e relaxar, talvez na praia, seu habitat natural, uma água de coco e uma cerveja pra curar a ressaca.
Pensou em ligar para ela, mas isso não seria necessário. Encontrou-a abraçada ao seu vaso sanitário com a maquiagem do rosto nas beiradas da lousa. O uísque de boa qualidade foi definitivo para ele estar de pé. Vodca vagabunda foi determinante para a catástrofe dela. Jogou-a no chuveiro, ambos de roupa e tudo, ele só percebeu que ainda estava de sapatos por causa do desconforto nos pés escorregadios. Tirou-os. Ela percebeu o momento e tirou, com alguma dificuldade, a calça jeans que ele usava e ele nem quis saber de tirar o vestido que ela estava. E treparam por longos minutos debaixo daquela água e durante o dia inteiro na cama úmida de chuveiro e suor. E foi assim, entre o uísque, a cerveja, a caipivodca e o sexo, por uns bons e profundos três anos. Ela se mudara para o apartamento dele e ele nunca mais viu o seu amigo. Está casado com uma professora de química e isso foi tudo o que soube entre o pão comprado na padaria embaixo do seu apartamento e a banca de jornal que lhe passou o último número da Times.
Um belo dia, quando resolveu chegar mais cedo em casa. Trouxe uma caixa de morangos e um espumante. Encontrou-a olhando pro espelho, daquele jeito que se olha para a consciência. Ela percebeu-o eternos segundos depois. “Você já chegou? Que surpresa!” Mas não houve convencimento nessa exclamação e ele logo indagou se ela sairia, maquiada e vestida adequadamente para um encontro. “Existe maneira adequada de se vestir para um encontro?” Ele sorriu, nenhuma tristeza ou raiva. “A última vez que você o vestiu fizemos sexo no banheiro com ele junto, de coadjuvante”. Era verdade. “Você volta para casa?”, ele completou, mas já sabia a resposta. “Nunca me maquio na sua ausência? Será que eu só saio com você?”, tentou ela, mas também já sabia o porquê da certeza dele. Era a primeira vez que ela não dizia, que se espantava, que agredia na impossibilidade de agir com naturalidade.
Mas no final era o vestido.
E tinha aquele olhar.
Aquele olhar.
“Já tem um lugar pra ficar depois disso?”
“Adeus, Carlos”.
“Adeus, Vanessa”.

Ela mandou alguém pegar as suas coisas do apartamento e nunca mais se viram. Assim como nunca mais vira o Sérgio, que casara com uma professora de química. E ele mesmo casou depois de um tempo. E todos foram felizes enquanto puderam e infelizes também, num ciclo de sete inseparável, preciso. E todos foram o que puderam ser, o que se deixaram ser. E a vida continuou, o trânsito fez barulho e a cerveja continuou aumentando de preço enquanto a vodca continuava vagabunda, sem pontos finais ou mistificações.


domingo, 30 de julho de 2017

O tapete

“E como estão os seus filhos? Devem estar enormes! E a esposa?”
“Estou separado faz três anos.”
“Nossa! A gente não se encontra há tanto tempo! Eu também me separei, não estava dando certo.”
E foi com este esbarrão na Avenida Presidente Vargas que um traço de pólvora fora derramado naquela crepitante conversa. Umas formulações de palavras simples, mas reveladoras. Wish i Could Fly, do Roxette, tocava na banca de jornal em frente. E talvez por ser ela, ao invés do Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, a vontade de um outro encontro de consequências tão bregas quanto Roxette fez-se imponente.
E houve o encontro e mais outro de igual constância e desejo. Houve o momento da troca de olhares e sorrisos sem palavras que sempre querem dizer muito sem precisar de sons ou gestos largos. E houve o sexo, a foda, a transa e o amor, teve rapidinhas também, teve prazeres na medida e noites em quartos de hotel que ninguém ousou dormir. Houve dias de chuva com as crianças presas na sala fazendo uma algazarra poderosa e dias ensolarados de passeios na Quinta da Boa Vista e no Jardim Botânico. Houve dias realmente difíceis. Houve momentos totalmente mágicos.
Houve prudência também, cuidado no tatear o espaço do outro e uma certa preocução em não pisar nos pedaços de vidro deixados por outros relacionamentos, preocupação em não colher nada que já tenha caído do pé, inclusive as palavras que não foram ditas e que, naquele momento, para nada serviam. Claro que nem tudo era possível evitar. Não inventaram um modo de se prever a rajada de vento trazendo uma decisão infeliz, uma frase arenosa.
Mas quem se banha no mesmo rio duas vezes? Não a filosofia. Eles tampouco. Portanto, mesmo com outros relacionamentos na bagagem, o livro estava sendo escrito outra vez e, como o percurso da gota d'água deslizando nas costas da mão, caminhos caóticos são traçados em oposição à escolha passada. E assim foram desbravando outras possibilidades.
Mas foram bons tempos e eles até alugaram uma casa de veraneio na subida da serra; uma fuga-clichê pra trepar no tapete em frente à lareira e comer fondue. Ela reclamou do cheiro do tapete e afirmou que pinicava, ele valorizou a sua dor nas costas, mas ela disse que isso era a obesidade, não o chão duro. E foram tempos de rara embriaguez e caos controlado. E houve muito suor no tapete por este tempo.
Hoje estão mais grisalhos. A febre dos anos 90 dera lugar a um mundo cheio de paranoias e pouco iluminado. A virada do século não trouxe conforto pra ninguém, muito menos avanços na capacidade de se olhar o próximo.
Mas eles estavam juntos.
E ele continuava obeso.





terça-feira, 2 de maio de 2017

Nós, os vagabundos



A primeira coisa de se observa quando se vai a uma manifestação é o nível de entusiasmo. A alegria de estar reunido com pares, pessoas que compartilham uma ideologia parecida, uma tribo com vertentes diversificadas, porém, unida num sólido objetivo.
Foi assim que eu me desloquei da Baixada Fluminense. Entusiasmado, certo de estar a caminho para encontrar a minha tribo, os meus admiráveis “vagabundos”. Peguei o trem até a Central do Brasil e, de lá, caminhei à ALERJ. E ela estava linda! A sua volta, ao invés dos engravatados deputados e seus assessores puxa-sacos, uma massa multicolorida, vagabunda e politizada cantarolando, conversando, ouvindo os discursos que flutuavam das caixas de som. E era “Primeiramente, #ForaTemer” pra cá, “Como vai? #ForaTemer” pra lá, que eu, totalmente #ForaTemer desde o início, já me sentia dentro.
Depois de algum tempo por lá, recebendo a energia daquele todo e desfrutando da coletividade daquele tudo, encontrei vários amigos de trabalhos antigos e de lutas eternas e resolvi acompanhá-los na caminhada à Candelária. Estávamos há 100 metros da ALERJ quando as bombas começaram. Resolvemos não correr, calejados desse instrumento imposto pelos governos idiotas deste Estado.
Ao barulho da terceira ou quarta bomba, um coro de #ForaTemer se ouviu e repetiu-se mais duas vezes. Foi maravilhoso!
Mas o que eu gostaria de escrever, de fato, depois de muitos dias do acontecido (até para afastar o puro entusiasmo do momento verdadeiro), é o seguinte: os governantes, por serem os nossos empregados representativos na política, deveriam ser dotados de mais inteligência. Talvez, sair do lugar-comum já seria um avanço.
Polícia com cara de mauzinho, bombas e gás, se antes apavoravam, hoje é motivo de luta intensificada. A maioria sabia que a repressão viria em algum momento, mas estávamos lá, mesmo assim. Sabe por quê? Porque perdemos o medo das bombas, perdemos a paciência com os telejornais noticiando mentiras, com a enxurrada de milhões de Reais em propaganda midiática, os bilhões perdoados dos banqueiros, empresários e industriais. Encheu o saco. O cassetete quebrado na cabeça do estudante não nos acua, revolta-nos. E, cá entre nós, só a vergonha de termos o presidente que temos já é motivo mais do que suficiente para irmos às ruas.
Eu sei que o país sempre foi governado por uma elite irresponsável e babaca, que o nosso sonho democrático é algo pingado, um banco de areia num mar de golpe. Contudo, quando você joga muitas bombas nos nossos ouvidos, chega uma hora que não ouvimos barulho, mas batucada. E pensando em música, vou citar uma cantarolada por jovens lindíssimos no decorrer da manifestação e lembrar uma coisa: amanhã vai ser maior.
“Se o povo soubesse o talento que ele tem
 Não aturava desaforo de ninguém”


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quarta-feira, 22 de março de 2017

O juiz que sequestrou um jornalista

Por Felipe Pena
Jornal Extra

"Tenho Pena dele" é o nome da página no facebook que minha mulher fez pra mim.

No começo, não achei a ideia boa. Argumentei que não ficaria bem perante a minha comunidade, mas acabei cedendo às pressões do amor midiático da Karlinha, esposa amada e zelosa.

Como sabem, sou juiz da Liga de Futebol de Várzea do meu bairro. Quando me visto de preto, todos me respeitam a abaixam a cabeça. Apito com força e conhecimento. Sou formado pela Soccer Judge Association, em Harvard, capital intelectual do esporte.

No campo, minhas decisões são rápidas. Não hesito em distribuir cartões vermelhos. Já mandei muita gente pro chuveiro mais cedo. Em alguns casos, deixo o jogador trancado no vestiário por meses até que ele entregue o técnico que o instruiu a entrar de carrinho no adversário. Aí expulso o técnico, o massagista e até o porteiro do clube. Sou o justiceiro da liga.

Os torcedores me amam. Quer dizer, a quase totalidade me ama. Os de amarelo amam um pouco mais. Tiram até selfies comigo quando vou a restaurantes, shows e homenagens. Mas, no ano passado, tivemos um pequeno problema de comunicação e minha dileta consorte pediu vênia para fazer a tal página no livro dos rostos.

"Será um desagravo a você" – dizia, com uma admiração karnal, ultrapassando a metafísica e querendo me defender de um episódio controverso.

Ela se referia ao fato de eu ter divulgado gravações de conversas com os jogadores durante uma partida. Na época, vazei tudo para a imprensa, mesmo sabendo que era ilegal. O importante era garantir a transparência do jogo através do grampo no meu apito. Mas o pessoal da federação não gostou e puxou a minha orelha. Quer saber? Obrei pra eles.

O problema mesmo é que ficaram irritadinhos porque chamei o capitão do time adversário pra uma conversa coercitiva com meus lindos e poderosos bandeirinhas. Nada demais, só uma vasculhada nas gavetas e duas ou três invasões de domicílio pra causar um AVC nos familiares.

E ainda fui obrigado a adiar a conversa porque um jornalista cretino vazou a operação. Quem ele pensa que é? Só quem vaza informação nesse jogo sou eu, meu querido. "Vai se arrepender" – pensei, e aguardei um ano pra dar o troco. Um ano de paciência, mas a hora do sujeito finalmente chegou.

Hoje, meti uma coercitiva nele. O meliante do microfone foi arrancado de casa pelos meus bandeirinhas musculosos (comandados por um hipster todo trabalhado no fascismo) e conduzido para a sede da federação dos juízes. E ainda levei computadores, celular, tablet e aquela parafernália eletrônica do blog. Se ele conseguir sair do cativeiro, vai ficar um bom tempo sem trabalhar.

Os colegas do cara nem reclamaram. São todos meus amigos e vivem das informações que vazo pra eles. Se não fosse por mim, não teriam notícias. Acha que alguém é louco de me peitar nesse bairro?

O futebol é meu esporte.

Sou o dono da bola e faço as regras aqui na várzea.

Os poucos que não se enquadram enfrentam a fúria de Karla, minha esposa, minha protetora e minha blogueira.

Entrem na página que ela fez pra mim no facebook.

Hoje, deixei um vídeo pra vocês. Amanhã, mostrarei as algemas do cativeiro e as fotos do sequestrado para aumentar o número de views.

Eu sei, eu sei: quando um juiz se preocupa com a popularidade, não faz justiça, faz política.

Mas quem se importa?

Isso é apenas futebol.

De bairro.

E de várzea.

Tenho pena de mim.



Felipe Pena é jornalista, escritor e psicanalista. Doutor em literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Sorbonne III, foi visiting scholar da NYU e comentarista da GloboNews. É autor de 15 livros, entre eles o ensaio "No jornalismo não há fibrose", finalista do prêmio Jabuti.


terça-feira, 21 de março de 2017

Do fluxo

“Por que eu? Minha irmã era, é muito mais bonita”. E ela nunca entendeu bem o porquê da escolha ou a movimentação dos astros. “Porque você brilha quando sorri com os lábios fechados, lábios carnudos e bem feitos, com os olhos grandes de jabuticaba e lindamente sedutores. Porque você explode quando gargalha, quando ajeita os cabelos rebeldes”. E ele gostava da voz rouca, do jeito triste de ficar séria, da facilidade em dizer foda-se.
Depois que ficaram, outras coisas e momentos incorporaram-se naturalmente àquela especulação. Ele tinha fascínio pelo formato do seu rosto, pelo jeito como ela beijava, sua paixão e excitação, seus seios pequenos, seu espírito decidido.
Claro que ele era muito infantil para ela, uma mulher completa em todo o seu estado de luz e sombras e, naturalmente, demorou pouco pra ela perceber isso. O término não foi grande coisa, ele sabia disfarçar a dor e atuar sobre a superfície do choro e foram abraçados e fazendo brincadeiras que se despediram àquela noite.
Ela não teve dificuldade de ajeitar a vida, pois pulsante e imediata, sabia de cor fazer omelete com os ovos quebrados; ele sofreu um pouco, pois pulsante e exageradamente abraçado a coisas como The Cure, e por que não? Ele era desse jeito meio dark e a beleza peculiar de se mover no mundo com essa visão niilista era um charme a parte; e ele viveu para desmentir isso e não ser convincente.
Certamente eles encontraram outros amores, pois viver demanda um bater de coração constante, mesmo que não ritmado. E soluços e contratempos fazem parte dos caminhos escolhidos. Uns falam que é preciso para que se haja evolução. Ele acha, apenas, que, enquanto matemática, números negativos e/ou fracionados também estão dentro do conjunto, e foi vivendo com ou sem dificuldade.
Um dia, encontraram-se num café, ela diz que havia sol, ele jura que ameaçava chover. Ela pediu frapê, ele, expresso. “Nunca entendi o porquê de você preferir a mim”, foi o que ela disse quando se sentaram. Ter respostas era algo absolutamente necessário para o seu espírito desbravador. Ele olhou-a com muita atenção enquanto fazia esta, para ele, pergunta boba, e reparou que ela sorria de lábios fechados, com o olhar radiante. Passaram-se 15 anos e a mulher continuava explodindo na retina dele.
“Eu te amo. Não sei explicar de outra forma.”
Despediram-se prometendo um novo encontro que nunca aconteceu. É do fluxo essas pequenas mentiras, um bálsamo.


 E ele nunca conseguiu esquecer a explosão de cores que eram o olhar e o sorriso dela, mas foi feliz à sua maneira e nunca deixou transparecer a energia atômica que carregava dentro de si. Seus filhos questionavam, às vezes, o porquê de tanto silêncio em dias de muito brilho e praia; ele apenas sorria e abaixava a cabeça. O amor também tem as suas quietudes.


sábado, 4 de fevereiro de 2017

The Stars

 Foi hoje que bateu.
Sabe aquele apertar no peito e o nó na garganta? Aquela vontade de bocejar que é choro querendo vir? Pois é. Bateu hoje.
Acordei cedo, dei banho na filhota, escolhi junto as roupas de ambos, peguei o ônibus e fomos esperar minha ex no lugarzinho de sempre. Eu com um delicioso Cappuccino, ela com seu folheado de queijo e mate com bastante gelo.
Retornei 'inda pouco. Minha tia fez um peixe trilha delicioso. Comi uns 8 com os dedos lambusados de fritura. Adoro.
Nada de importante pra fazer, liguei a TV, sintonizei o YouTube, escolhi um álbum do Bowie, deitei com um livro em mãos. E aí bateu.
Pensei no Lula.
Pensei no que ele significa, na grandeza absurda do líder e na dor impotente do homem.
Pensei na Mulher. Marisa. Na grande e vigorosa Marisa. Naquela que confeccionou A Estrela e que brilhou longe dos holofotes perversos do poder. Estava sobre eles. Estava além disso tudo.
Matre, mom, mãe. Via Láctea.
Foi hoje que bateu.
Como um martelo.



quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Dias de Quixote e dias de Sancho ou homenagem ao professor Morejón


Picasso
Como em tantas coisas, entrei no mundo de La Mancha pelas mãos de Monteiro Lobato. Ele traduziu para a linguagem infantil o clássico espanhol. Adorei a leitura. Depois, descobri o texto pelas mãos de dois portugueses, os viscondes de Castilho e Azevedo. Era um texto erudito, com muitas palavras a descobrir. Enfrentei bem, mas ainda não era a hora para a paixão. Já era um homem adulto quando descobri novas traduções, como as de Eugênio Amado e de Sérgio Molina. Por fim, aproveitando o lançamento de edições críticas do quarto centenário, li em espanhol, em 2005. E, ao longo de todos esses anos, sempre fui apaixonado pelas imagens de Gustav Doré, que eu já estimava na Divina Comédia, na Bíblia e no Paraíso Perdido.

Um capítulo do escritor E. Auerbach, no clássico Mimesis, tratou da obra do espanhol e aumentou minha ligação com a literatura de Cervantes. A Dulcineia Encantada analisa a representação do real na obra. Um privilégio ler alguém muito mais inteligente do que nós: o olho de Auerbach viu coisas que me escaparam inteiramente. 

Na década de 1990, conheci o professor Júlio Garcia Morejón, intelectual devotado ao mundo da literatura do século de ouro e dono de uma bela biblioteca cervantina. Dr. Morejón ajudou-me com meu claudicante espanhol e mostrou-me edições preciosas do Quixote. Dei um salto exponencial no meu conhecimento. Desde então, dialogo com o bardo inglês e o espanhol. Cito-os, penso sobre eles, encontro soluções intelectuais e pessoais a partir de suas obras. Agradeço a generosidade do professor. 

Há alguns anos, fui agraciado com um prêmio da instituição dirigida pelo mesmo professor Morejón, o Unibero. Para receber o honroso galardão, fiz um discurso aproximando Shakespeare e Cervantes. Imaginei, com liberdade poética, um encontro entre ambos e um diálogo sobre o ato de criar. Disse várias vezes ao público: é uma licença ficcional, eles nunca se encontraram. 

Terminada a fala, fui interpelado por um especialista iracundo. Ele estava transtornado. Questionava meu equívoco: “O senhor sabe que Cervantes nunca encontrou Shakespeare?” Sim eu sabia e por isso tinha repetido que se tratava de um exercício aproximativo, comparativo. Era uma liberdade literária, não um fato histórico. Desolado com minha estupidez, o especialista continuou vociferando. Eu me afastei pensando: como é possível estudar tanto Cervantes e continuar pensando como uma planilha Excel?

Penso na conversa até hoje. Decadente, o nobre D. Quixote dava asas a sua imaginação e enfrentava gigantes. Cheio de bondade e de ética, encarnava valores de cavalaria já crepusculares há muito. Era a vitória do ideal sobre o real. Seu auxiliar, Sancho, era o triunfo do imediato, do concreto, do aqui e agora. Quixote lia demais, Sancho nunca lia. O cavaleiro via além de tudo, o escudeiro não conseguia abstrair nada fora do imediato que seus olhos contemplavam. O fidalgo era magro, aéreo, onírico; Sancho gordo, terreal, interesseiro. 

Pais e professores costumam pedir que o real se manifeste em seus rebentos e alunos. “Seja concreto, tenha metas precisas, pare de pensar o impossível.” A idade costuma nos tornar espessos. Como o escudeiro, desejamos que eles governem uma ilha, ou uma empresa, ou uma instituição. O sonho alheio vai ficando incômodo à medida que temos consciência do que nos custou abandonar o nosso. 

O atarracado auxiliar é o homem dos ditados de senso comum: “À noite, todos os gatos são pardos”, repete à exaustão. Sancho aparenta mais sensatez do que seu amo, mas sua sanidade é baseada na ambição rasteira. O auxiliar deseja coisas objetivas do mundo, exequíveis e ortodoxas. 

Quixote lê e sonha, busca mais e, claro, apanha e é ridicularizado. O fidalgo esquálido é insano e pode transformar pelo olhar tudo ao seu redor. Nosso Cavaleiro da Triste Figura mostra fulgores racionais em meio aos devaneios. A loucura de Hamlet de Shakespeare é artificial e política. A demência de Orlando (obra Orlando Furioso) é real. A alienação quixotesca é poética e imaginativa. 

Propor utopias para combater a enfermidade do real. Ver gigantes em moinhos arruinados. Amar uma Dulcineia belíssima e especial. Combater o mal, defender os fracos, ler muito, sonhar... Eis parte da fórmula quixotesca. 2017 está esmurrando nossa porta. Espero, no novo ano, não morrer afogado na lucidez rasa de Sancho. Quero um pouco da insanidade sábia do fidalgo. Ser Sancho engorda; ser Quixote transcende. Querem saber no que resultou a objetividade material e concreta de Sancho Pança? Tornou-se político no fim da vida. Feliz 2017!


sábado, 17 de dezembro de 2016

Somos mesmo resultado de nossas escolhas?

Elika Takimoto
Minha Vida é um Blog Aberto
Você já deve ter ouvido por aí que vivemos de acordo com as nossas escolhas ou que somos resultado daquilo que escolhemos. Há várias frases como essas compartilhadas ou ditas diariamente por alguém. A despeito de isso parecer algo óbvio e até sábio, esse papo motivacional, a meu ver, é uma grande ilusão. Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente.

Comecei a suspeitar de que a ‘liberdade’ é uma mentira em que acreditamos. Já escrevi sobre isso por aqui. Daí para concluir que a ‘escolha’ é uma ilusão não me custou nada. Nós, como seres humanos, gostamos muito dessa “ideia de liberdade”. Mas será que nós somos completamente autônomos como pensamos ser? No cotidiano, temos a faculdade de realizar ações que, em tese, poderíamos não realizar caso quiséssemos. O que defendo é que esta noção é muito mais complexa quanto parece e que pode ser tão real quanto uma miragem no deserto. Será que temos realmente a faculdade plena de escolher entre esse ou aquele caminho? Estamos inteiramente livres para escolher entre fazer ou não fazer certas coisas? Ouvir que somos livres para escolher isso ou aquilo sempre me incomodou profundamente porque jamais me senti livre e escolhendo nada. Nem profissão, nem marido, nem ter ou não filhos e nem a separação foram me dados como alternativas. Como não?, diria você. Vem comigo que no caminho eu te explico.

Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito?

Ok. A ciência também pode ser um tremendo discurso romântico e subjetivo, mas trazê-la para a discussão nos permite perguntar se e quais forças externas desempenham algum papel na nossa tomada de decisões. E só pelo fato de flertar com a ciência sem sequer aprofundarmos em seus fundamentos já surge a dúvida: será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?

Diria você: mas eu me vejo escolhendo, por exemplo, em tomar café com açúcar ou com adoçante. É? Vejamos: seja lá qual for a sua “escolha”, considere que ela possa ter acontecido porque a mídia tem mostrado demasiadamente o mal que um ou outro produto faz, que seu paladar não aceita ou um ou outro, que o seu médico aconselhou a diminuir o consumo de um dos dois e por aí vai. Até a mais simples das escolhas conta com fatores que não podemos saber ao certo quais são e muito menos pensar em questioná-los, mas que existem, concordam?

Continuando… Se acreditarmos nas ideias levantadas por Freud, veremos que não agimos de forma livre mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes, como se fossemos reféns do mesmos. Desta forma, acreditamos estar agindo a todo instante conforme queremos e escolhemos sem notar que na verdade, estamos satisfazendo desejos que se encontram em nosso inconsciente. E vejamos como isso faz sentido: o que nos leva a consumir certos produtos, a trabalhar em certas atividades e a nos relacionar com determinadas pessoas? O quanto condicionamos nossos atos aos resultados que estes trarão? O quanto estes resultados que almejamos são construídos pelo meio social em que vivemos? Dito de uma outra forma: se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?

Se acompanharmos os estudos feitos pela neurociência veremos que atribuir à mente humana alguma liberdade de decisão não condicionada por processos inconscientes parece cada vez mais difícil. Para muitos neurocientistas, o nosso cérebro é um órgão do corpo, como tantos outros, igualmente formado por tecidos e células especializadas, que funcionam conforme nossa constituição bioquímica, reagindo a estímulos internos e externos de formas complexas, porém, de certa maneira, previsíveis. A mente é um troço que emerge da atividade do cérebro em conformidade com as leis da física e da química, o que implica em dizer que somos, em certa medida, o que a química de nossos cérebros faz de nós ainda que não sejamos previsíveis totalmente. Cada emoção pode ser associada a processos neurológicos que, por sua vez, podem ser reduzidos a processos bioquímicos que, em última instância, nós não temos controle.

Eu, particularmente, não acho que a mente possa se reduzir aos processos que ocorrem no cérebro. Para mim, a equação seria “cérebro + alguma coisa = mente”, sendo que essa alguma coisa geralmente é algo metafísico, que traria imprevisibilidade para as decisões do indivíduo, quebrando o determinismo do mundo físico. Mas ainda assim não acho que isso implique a existência do livre arbítrio. Sentir nojo de insetos não me parece uma escolha. Sentir-me mal em um determinado ambiente não me parece uma escolha. Sentir-me atraída por alguém não me parece uma escolha. Sentir saudade não me parece uma escolha. Sentir-me sozinha não me parece uma escolha. Sentir-me triste não me parece uma escolha. Sentir seja lá o que for não me parece uma escolha.

Afinal, “o que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Eu não sei ao certo, mas se você acha que é você mesmo ou nada, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada. Porém, o que seria algo que não é determinado por nada? Complicado quando pensamos seriamente a respeito, não?

Ainda na esteira da ciência, pergunto-lhe: uma célula individual tem o livre-arbítrio? E uma bactéria, teria? Ou uma flor? E uma girafa, um cachorro ou um leão, por exemplo – será que eles têm livre-arbítrio? Em que ponto da nossa história essa tão contraditória e ilusória ideia de liberdade para escolher apareceu em nós?

Visto pelo lado religioso, perceberemos como essa ideia surge e a necessidade de que acreditemos nela, afinal, o fundamento do mal e da punição dos pecadores é o livre arbítrio. Que sentido teria mandar para o inferno pessoas cujos pecados não tivessem sido cometidos por vontade própria? Ou pior, sem agentes de vontade livre, a culpa pelo mal no mundo recairia sobre o único ser livre que sobraria: Deus. O fato de a ideia da escolha vir associada a outra de julgamento não é por acaso: a última precisa da existência da primeira. Isso é algo simples de compreender, afinal, quais seriam as consequências para a sociedade, então, se descobríssemos que não existe livre arbítrio? Como a doutrina da condenação e salvação se sustentaria?

Penso que grande parte da infelicidade, da culpa, do arrependimento e da angústia que sentimos é porque nos fazem acreditar que somos livres e que devemos pagar pelas más escolhas. No caso das religiões abraâmicas (cristianismo, islamismo e judaísmo) o impacto da ideia de que não somos livres para escolher seria fatal. Muito complicado, eu sei, acreditar que não escolhemos nada e que não somos culpados por nada. Como lidaremos com a responsabilidade e autonomia pessoal na Moral e no Direito? Como algumas religiões se legitimariam? Como educar nossos filhos sobre o certo e o errado?

Pesquisando aqui, li que em 2008, em um estudo publicado na Nature com o título Determinantes Inconscientes de Decisões Livres no Cérebro Humano, ficou provado que a decisão começa a ser formada no cérebro até 10 segundos antes dele tomar consciência disso. Ou seja, você se prepara inconscientemente pra fazer algo bem antes de sequer se dar conta que está fazendo isso – e bem antes de realizar o movimento de fato. Outros estudos, dessa vez focados na atividade de cada neurônio em vez do cérebro como um todo, mostraram que as células neurais ficavam ativas antes da decisão de apertar um botão, por exemplo.

Tudo bem. Vocês podem dizer que o livre arbítrio é muito mais profundo do que os resultados dessas pesquisas nos induzem a pensar. Em vez de mexer dedos e apertar botões, seria necessária a análise de atividades mais complexas. Concordo com isso, mas ainda assim percebo que mesmo essas tarefas mais abstratas e intelectuais do que propriamente de movimento não são totalmente espontâneas – elas dependem de coisas como carga genética, experiência, traumas de infância etc.

Talvez você acredite tanto nessa ideia de livre-arbítrio e da existência da escolha porque ignora as causas do seu querer. E veja que interessante e paradoxal: quanto mais imaginamos um livre-arbítrio para escolher, mais nos tornamos escravos porque precisamos de regras que limitem, justifiquem e expliquem a liberdade.

Somos o que somos porque, acredito eu, temos uma essência que não controlamos. Talvez, se houver liberdade de fato, esta deva ser compreendida como a proximidade máxima do conhecimento dessa nossa essência (que é ímpar para cada ser), do que nos torna tristes ou mais felizes. Vocês que acham que existe liberdade de escolha perdem o tempo pensando que tudo poderia ter sido diferente e ficam se culpando por caminhos (que não existem de fato) que poderiam ter tomado. É para isso que o livre-arbítrio nos serve. Para condenar e nos culpar.

Mas, então, perguntaria você, se eu não posso escolher como posso ser julgado? Justamente. Eu acho que essa ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que eu não aceito como objetivas e universais. Mas, continuaria você, se não há certo nem errado, matar, por exemplo, seria lícito? Se estou criticando a escolha, estou dizendo exatamente que quem mata não teve outra alternativa; o que não quer dizer que um assassino não deva ser condenado porque entendo que o ‘mal’ pode ser considerado como aquilo que prejudica o outro.

Perceba o que quero dizer: ainda que eu acredite que não exista o bem e o mal nesse mundo isso não significa que dispenso qualquer valor. Não existir o bem e o mal não quer dizer que não exista o bom e o ruim. Tenho meus valores. O ponto é que penso no ser em si, no que o movimenta, no que o engrandece e o diminui e dispenso um critério exterior e moral para julgar as coisas. Refugiamo-nos naquilo que nos limita, nossa moral nos protege, concordo. Mas friso que isso nos enfraquece e nos tira muitas essências. Quando eu nego essa ordem moral do mundo abro as portas para os devires: permito-me tornar o que sou e a aceitar o outro como ele é. Sem julgamentos.

Compreendo, vale observar, que a liberdade da vontade não poder ser coerentemente pensada através de conceitos (uma vez que, em última instância sempre caímos ou no determinismo ou no acaso) não significa que sua possibilidade esteja negada. Mas não consigo desistir da ideia de que a metáfora da bifurcação e de caminhos escolhidos é uma invenção que só nos serve para nos gerar culpa e medo.

Se entendo que agi mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim. Neste caso, tentarei mudar, digamos, a química de meu corpo ou o meu modo de pensar para que eu seja capaz de agir de uma forma diferente quando submetida a uma situação similar.

Por fim, as consequências de acreditar que não temos escolhas, ou seja, reconhecer que minha mente consciente nem sempre vai originar meus pensamentos, minhas intenções e ações não muda, a meu ver, o fato de que pensamentos, intenções e ações de todos os tipos são necessários para a vida.

Delirei muito? Não tenho culpa se entendo tudo assim.


quinta-feira, 3 de novembro de 2016

DÍA DE LAS MUERTAS


Também conhecido como dia das bruxas, o Halloween reacende toda a história acerca das muito simpáticas – porém perseguidas – mulheres que moravam em florestas, usavam roupas escuras, eram responsabilizadas por todas as coisas ruins que aconteciam e terminaram queimadas pelo fogo da Inquisição. Assim é contada a história, e o mais curioso de se comemorar o Halloween é falar das atrocidades às quais muitas mulheres foram submetidas como se isso não acontecesse mais.

Se parte das mulheres brancas foram perseguidas, estupradas e queimadas por praticarem bruxaria, todas as mulheres negras já nasciam submetidas a uma realidade muito pior, que desde cedo já as tornava alvo de violências diversificadas nas mãos de homens e de mulheres brancas. Os anos de escravidão se mostram nos números sobre violência contra a mulher negra, pois enquanto o feminicídio de mulheres brancas diminuiu 10%, o de mulheres negras aumentou 54%, o que mostra que o cenário não mudou muita coisa.

A realidade é que nós ainda somos estupradas, assassinadas, silenciadas, empaladas com estacas de madeira. Se não somos submissas ou não nos conformamos fácil com qualquer coisa, somos as chatas, as bruxas, as loucas e de nada adianta nos submetermos, porque a verdade é que mesmo não sendo mais consideradas bruxas no sentido de praticantes de bruxaria, seremos sempre perseguidas.

O Brasil foi considerado recentemente o pior país da América do Sul para se nascer mulher. No México, seis mulheres são mortas por dia enquanto que no Uruguai, 22 mil denúncias de violência de gênero foram registradas. No Chile, 39 mulheres foram mortas esse ano e na Argentina, uma mulher é assassinada a cada 30 horas.

Se está provado que a violência contra a mulher é muito presente na América Latina, por outro lado, a força do movimento feminista cresce em resposta. O “Ni Una Menos”, movimento argentino que grita pelo fim do feminicídio e da violência contra a mulher ganhou força e protestos em apoio já aconteceram em boa parte da América Latina, inclusive no Brasil.

Na Argentina, uma estudante de 16 anos foi sequestrada, dopada, estuprada e empalada com uma estaca de madeira. A América Latina foi às ruas contra mais esse feminicídio, protestos ocorreram em vários países. No México, hoje é comemorado o Dia dos Mortos, dia de celebração em memória aos mortos e mortas, porém, as mulheres mexicanas foram às ruas e transformaram a data em protesto contra o feminicídio. Várias mulheres foram às ruas na Cidade do México para dizer não à violência de gênero em todo o país.

A América Latina é uma mulher que chora a morte de suas filhas, mas que também é luta e transformação. Avante, companheiras!

En memoria de Lucía Pérez


quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Ódio à inteligência: sobre o anti-intelectualismo

Revista Cult

Os preconceitos não são inúteis. Eles tem uma função importantíssima na economia psíquica do preconceituoso. Sem os preconceitos, a vida do preconceituoso seria insuportável. Os preconceitos servem na prática para favorecer uns e desfavorecer outros, para confirmar certezas incontrastáveis, manter a ordem e descontextualizar os fenômenos. São parte fundamental dos jogos de dominação e de poder, servem para mistificar, para manipular, mas servem sobretudo para sustentar um ideal falso na pessoa do preconceituoso, ideal acerca de si mesmo, um ideal de “superioridade”, sem o qual os preconceitos seriam eliminados porque perderiam, aí sim, a sua função fundante.
Ainda que sejam psicológicos e não lógicos, daí a aparência de irracionalidade, os preconceitos funcionam a partir de uma lógica binária, bem simples, uma espécie de “lógica da identidade”, mas em um sentido muito elementar, a lógica da medida que reduz tudo, seja a vida, as culturas, as sociedades, as pessoas, ao parâmetro “superior-inferior”. Preconceitos não funcionam fora de jogos de linguagem que são jogos psíquicos, que produzem algum tipo de compensação psíquica.
Vivemos tempos de descompensação emocional profunda, em uma espécie de vazio afetivo (junto com um vazio do pensamento e um vazio da ação que se resolve em consumismo acrítico tanto de ideias quanto de mercadorias). Nesses tempos, a oferta de preconceitos se torna imensa. No sistema de preconceitos, o objeto do preconceito varia, conforme uma estranha oferta: se há muitos judeus, pode-se dirigir o ódio, que é o afeto básico do preconceito, contra eles. Se há mulheres, homossexuais, negros, indígenas, lésbicas ou travestis, o ódio será lançado sobre eles, conforme haja oportunidade. Verdade que o ódio é sempre dirigido àquele que ameaça, ou seja, no fundo do ódio há muito medo. O preconceituoso é, na verdade, em um sentido um pouco mais profundo, alguém que tem muito medo, mas em vez de enfrentar seu medo com coragem, ele usa a covardia, justamente porque é impotente para enfrentar seu próprio medo.
O preconceituoso é, basicamente, um covarde.

Tendo isso em vista, é importante falar de um preconceito que está em voga nesse momento: o anti-intelectualismo. Há um ódio que se dirige atualmente à inteligência, ao conhecimento, à ciência, ao esclarecimento, ao discernimento. Ao mesmo tempo, esse ódio é velado, pois o lugar do saber é um lugar de poder que é interessante para muitos. Se podemos falar em “coronelismo intelectual” como um uso elitista do conhecimento, e de “ignorância populista”, como um uso elitista da ignorância, como duas formas de exercer o poder manipulando o campo do saber, podemos falar também de um ódio à inteligência, do seu apagamento.
Há, dividindo espaço com opressões próprias ao campo do saber, um estranho ódio ao saber em sua forma crítica e desconstrutiva. Um ódio que se relaciona com a ameaça libertária do saber, um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para todos os preconceitos. O pensamento e a ousadia intelectual tornaram-se insuportáveis para muitas pessoas chegando a um nível institucional e, não raro, acabam excluídos ou mesmo criminalizados.
Diversos exemplos de anti-intelectualismo podem ser observados na sociedade brasileira. Desde a caricata presença do ator Alexandre Frota (menos pelo que ele é, mas sobretudo pelo que ele representa) como formulador de políticas públicas do Ministério da Educação ao projeto repleto de ideologia (e mais precisamente: da ideologia, de viés autoritário, da “negação do saber”) da “Escola sem partido”. Do silêncio em torno da exclusão de disciplinas (filosofia, sociologia, artes, etc.) do ensino médio (MP 746) à expressiva votação de candidatos que apostam no uso da força, em detrimento do conhecimento, como resposta aos mais variados problemas sociais. Do descaso com a educação (consagrado na PEC 241) ao tratamento conferido aos professores em todo Brasil (na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais constantes críticas direcionadas ao candidato Marcelo Freixo, que disputa o segundo turno das eleições municipais contra o pastor licenciado da IURD Marcelo Crivella, é de que por ser professor não falaria “a linguagem do povo”).
O alto índice de abstenções, votos nulos e brancos (bem como a expressiva votação de políticos que se apresentavam como não-políticos) também é um sintoma do anti-intelectualismo, na medida em que o eleitor identifica o político como aquele que detém o “saber político”, um “saber” que foi demonizado pelos meios de comunicação de massa.
No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da forma que o povo desinformado julgaria, mesmo que para isso seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da República. Por outro lado, não são raros os casos de juízes e promotores de justiça que respondem a procedimentos administrativos acusados de decidir contra o senso comum propagado pelos meios de comunicação de massa.
Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo identifica-se com a construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes, nem corajosos, mas usam uma performance política em que gritar e esbravejar provocam efeitos populistas). A lógica da peste identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos típicos de um conservadorismos carente de reflexão, onde desaparece o saber e a educação.
A barbárie está em curso.


terça-feira, 13 de setembro de 2016

A Lava Jato e a Primeira Lei de Rodrigo Janot



É conhecida a Lei de Goodwin para as discussões.

À medida em que cresce uma discussão, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou o nazismo aproxima-se de 1 (100%).

A melhor versão da Lei de Goodwin no Brasil, é a Primeira Lei de Janot:

À medida em que crescem as críticas ao trabalho do Procurador Geral da República, a possibilidade de que ele atribua à tentativa de melar a Lava Jato e defender a corrupção aproxima-se de 1 (100%).

Ontem, na posse da Ministra Carmen Lúcia na presidência do STF (Supremo Tribunal Federal), Janot recorreu novamente à Primeira Lei de Janot:

Tem-se observado diuturnamente um trabalho desonesto de desconstrução da imagem de investigadores e de juízes. Atos midiáticos buscam ainda conspurcar o trabalho sério e isento desenvolvido nas investigações da Lava Jato.

Janot e a Lava Jato estão blindados pelo maior sistema de controle da informação da história: a imensa rede comandada pela Rede Globo e secundada por todos os demais grupos de comunicação, uma barreira que impede qualquer tipo de crítica e até o exercício do contraditório. As críticas se limitam a veículos alternativos.

Qual a razão, então, de Janot se colocar como vítima de campanhas? É que a liberdade de imprensa, mesmo que se esgueirando por frestas do cartel da mídia, incomoda. E as críticas, mesmo sendo ecoadas em ambientes restritos, têm a consistência dos argumentos comprováveis, deixando o dr. Janot em uma sinuca de bico, da qual não tem encontrado meios de escapar.

Esta é a razão de Janot - e os procuradores da Lava Jato - só aceitarem conceder entrevistas a jornalistas da velha mídia, especialistas em levantar a bola, e não se valer de perguntas incômodas para obrigá-los a se explicar.

A sinuca é simples:

1. A suspeita geral é que o Janot tem uma postura flagrantemente partidária, poupando o PSDB e, principalmente, seu conterrâneo Aécio Neves.

2. A prova do pudim para acabar com a suspeita é simples: encerrando o inquérito contra Aécio e acusando-o perante o Supremo.

3. Apurar as denúncias contra Aécio é trabalho de semanas: tem-se o nome do subornado – Dimas Toledo, que até hoje sequer foi indiciado ou ouvido -, a lavanderia – a empresa Bauruense -, a destinatário – Andrea Neves – e ainda pistas de offshores abertas em nome da família.

Por que Janot não desmente as suspeitas, denunciando Aécio? Porque não tem condições ou vontade política de denunciar Aécio, seja pela afinidade política, seja pelas alianças formadas para derrubar Dilma, seja pelos laços da origem mineira. E sem a presunção da isenção, como pretende colocar-se ao largo das críticas ou defender o estilo draconiano das Dez Medidas contra a corrupção? A contrapartida mínima a tanto poder é o compromisso com a isenção.

No entanto, a parcialidade de Janot é tamanha que adivinhar seus próximos passos tornou-se um exercício enfadonho, de tão previsível.

Por exemplo, quando se montou o jogo de cena com a capa de Veja – com uma não-denúncia contra o Ministro Dias Toffoli --, que Janot utilizou como álibi para interromper as negociações da delação de Léo Pinheiro, cantamos aqui:

· Pinheiro iria fazer uma delação incriminando, entre outros, Aécio e Serra;

· Janot interrompeu as negociações para forçar Léo Pinheiro a mudar a estratégia e selecionar apenas os alvos que interessavam politicamente a ele e a Sérgio Moro: Lula e Dilma.

Ontem, em Curitiba, Léo Pinheiro reformulou sua delação retirando qualquer menção a Aécio e Serra e, induzido pelas perguntas de Sérgio Moro, enfiar Dilma na história a golpes de martelada. Acabou lembrando-se que Dilma participou de um jantar na casa do senador Gim Arguelo. Quarenta minutos após sua saída, Léo acertou com Arguelo a propina para abafar a CPI da Petrobras. Eia a prova do crime.

Por isso mesmo, não esperem que a delação de Eduardo Cunha – para Moro ou Janot – resulte em qualquer dano aos intocáveis da política. Cunha, eu, a torcida do Flamengo e do Atlético Mineiro sabemos que há duas pré-condições para que o MPF aceite a delação: a primeira, é incriminar Lula e Dilma; a segunda, é livrar Aécio e Serra. A terceira é dizer que as delações foram feitas espontaneamente, sem nenhuma pressão dos inquisidores.

Se o dr. Janot desmentisse, daria a mão à palmatória com todo prazer.